Alguém nos convenceu de que tínhamos de trabalhar mais. Que tínhamos de trabalhar diferente. Que tínhamos de trabalhar sempre. Alguém nos disse que o futuro já chegou, a crise também, que os mais lentos ficam para trás e não terão agilidade para apanhar o comboio do progresso, aquele que vai para o futuro e leva com ele todos os ágeis de pensamento que conseguem adaptar‑se a todas as dificuldades, encarando‑as como desafios e não obstáculos.
Alguém nos passou um léxico diferente, umas palavras novas, outras estrangeiras, outras num contexto diferente daquele para que foram inventadas. Disseram‑nos que era a nova forma de comunicação e que se não usássemos uma daquelas a cada cinco minutos teríamos trava‑linguas, o nosso cérebro já não responderia tão bem, íamos ficar para trás. E teríamos de praticar muitas vezes. Sempre. A caminho de casa, em casa, à refeição, depois do jantar, a deitar os miúdos.
Alguém nos disse que em vez de respirar fundo devíamos respirar rápido. Assim perdíamos menos tempo. Não se tratava de ganhar oxigénio, tratava‑se de o poupar para o que fosse mesmo preciso. Para quando estivéssemos cansados das maratonas de trabalho, para quando precisássemos de recuperar o fôlego para não deixar o cliente falar, para quando tivéssemos de nadar todas aquelas piscinas para provar que somos ágeis e resistentes.
Alguém nos disse – e nós acreditámos – que estar sempre disponível era uma coisa boa. Que manter sempre o telemóvel ligado é uma coisa boa. Que trabalhar 14 horas por dia é uma coisa boa. Não apenas hoje ou amanhã ou quando fosse preciso, mas sempre, porque assim somos mais ativos e mais modernos. Não era para salvar o emprego, não era para passar o período experimental, não era para terminar aquele projeto especial que iria garantir um balão de oxigénio de euros para pagar os ordenados da equipa.
Não era, sequer, para ajudar o colega que se sentia em baixo naquele dia em que olhava em redor por uma cabeça amiga que lhe desse as ideias que ele não conseguia ter. Não era nada disso. Não eram as exceções. Eram as regras. Alguém nos disse que o extraordinário é o novo o normal.
Alguém nos disse que todos os fins de tarde em que não desligámos, todas as noites em que fizemos maratonas, todos os sábados e todos os domingos em que não levantámos os olhos do computador eram, afinal, uma coisa boa. Sinal de trabalho e de criatividade do mercado. Alguém nos disse que haver sempre fogos para apagar, prazos novos para cumprir, clientes que precisam das coisas para ontem eram, afinal, uma boa notícia pela qual devíamos estar agradecidos.
Alguém nos disse que a culpa de não descansarmos é nossa, que se passamos tempo a mais no escritório é porque não o gerimos bem, que se quisermos conseguimos fazer tudo, basta querer muito e querer com muita força e as coisas acontecem. Alguém nos disse que o presentismo é um dom pelo qual devemos ser agradecidos. Alguém nos disse que podemos descansar tudo o que queremos quando morrermos e que até lá temos de aproveitar tudo. Sugar o tutano. Carpe diem e o camandro.
Alguém nos disse que o tempo que não passamos hoje com os filhos pode ser recuperado amanhã, basta ultrapassar agora esta fase mais complicada e perfeitamente justificada. Alguém nos disse isso tudo. E esse alguém, esse que disse tudo isso, mentiu.