Quando um general pôs em alvoroço um país

Notícias Magazine

«O Holocausto devia levar‑nos a ponderar a nossa vida pública e, acima de tudo, tem de levar todos os que podem assumir responsabilidades públicas a fazê‑lo. Porque se há uma coisa assustadora na memória do Holocausto é encontrar, entre nós em 2016, vestígios dos horríveis processos que se desenvolveram na Europa – em particular na Alemanha – há setenta, oitenta e noventa anos. Não há nada mais fácil do que odiar o estrangeiro, semear o medo, e transformarmo‑nos em bestas, tornarmo‑nos moralmente corruptos e hipócritas.»

É longa a transcrição mas é demasiado importante para não ser assinalada. Este foi o discurso que inflamou Israel nos últimos dias, proferido por Yaïr Golan, chefe de Estado adjunto do Exército daquele país. Desencadeou uma vaga de protestos, exigindo a demissão do oficial, e este apressou‑se a esclarecer que não estava a comparar o seu exército ao poder nazi.

Não conheço em pormenor a realidade de Israel, mas li as notícias que surgiram na imprensa internacional e percebi que Yaïr Golan não é propriamente conhecido por fazer declarações explosivas. Pelo contrário, é um homem contido que pensa trezentas vezes antes de falar. A opinião que deu naquele dia, em plena comemoração oficial da Memória do Holocausto, parece traduzir o mal-estar de muita gente no país, incluindo nas forças armadas.

O motivo direto da crítica do general parece ter sido o caso do soldado israelita que matou a sangue‑frio um palestiniano imobilizado no solo, imagens abundantemente divulgadas nos meios de informação e nas redes sociais. O caso está a ser julgado em tribunal marcial e, sobretudo, levantou questões de princípio: ser ou não igual aos que nos fizeram as piores crueldades, eis o problema. Mas o impacto deste caso extravasou para o debate político, como se a atuação agressiva de Benjamin Netanyahu perante a população palestiniana, criticada no estrangeiro, fosse afinal o pano de fundo que de algum modo justifica e permite a atitude do soldado.

«Acreditamos na justeza da nossa causa, mas nem tudo o que fazemos é justo», disse ainda o general. «No dia da Memória do Holocausto, ao recordarmos os seis milhões que foram chacinados na Europa, é nossa obrigação recordar os 6,5 milhões que aqui vivem hoje, e interrogarmo‑nos sobre o significado do regresso à nossa terra, o que devemos ou não considerar sagrado, o que é ou não adequado elogiar.»

A II Guerra Mundial ainda não é um daqueles factos históricos que só aparecem à superfície quando algum historiador descobre um novo dado. Não permite sequer comemorações simbólicas de centenários, ainda não passou esse tempo. O Holocausto é hoje sinónimo do mal absoluto, os campos de concentração continuam a tocar no fundo do nosso ser, e ainda há muitas feridas abertas que a história, a filosofia, a literatura, o cinema, as artes plásticas, continuam a evocar. E a televisão, que nos leva a casa o pior mas também o melhor. Veja‑se a série Uma Aldeia Francesa que a RTP2, especialista em divulgar produções europeias de qualidade, tem vindo a exibir.

Escrevo no dia em que é anunciada a visita de Barack Obama a Hiroxima, uma das mais chocantes memórias dessa guerra, e sem dúvida de que nestes meses em que Donald Trump ocupa, para nossa perplexidade, o lugar de um medo para o futuro, essa viagem ganha ainda maior significado.

«Na minha opinião, o Holocausto deve levar‑nos a aprofundar as nossas interrogações sobre a natureza do homem», disse o general que está à frente do exército de Israel. Uma frase mil vezes repetida e no entanto ainda e sempre apropriada.

[Publicado originalmente na edição de 15 de maio de 2016]