Ao longo do crescimento, chegam sempre momentos em que as crianças se imaginam invisíveis. Como seria ver e não ser visto? Essa ideia promete liberdade, seduz durante alguns instantes mas, logo depois, seguindo esse pensamento, percebe- se que, em muitos aspetos, ser invisível é não existir, é ter medo.
Sendo alguém, não podemos fugir de ser alguém. Ocupamos um lugar.
É preciso coragem para pedir a palavra. Quando se levanta a voz, todos os olhares se viram na nossa direção e alguns, muitos, ficam desagradados com qualquer coisa que tenhamos para dizer. Os argumentos que usarão para nos contrariar dependem do que tivermos afirmado, mas a má vontade depende diretamente da nossa existência.
No nível de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos, a lei proíbe que se mate, mas permite que se anule o outro. Cobrir de silêncio é uma prática absolutamente legal. A justiça é cega mas, como sempre, a história avança contra o medo.
Temos direito a possuir um nome e uma sombra.
Nascemos para isto. Entre todas as dúvidas que podemos alimentar sobre as razões de estarmos aqui, se duvidarmos de que estamos aqui, de que existimos e de que merecemos esta existência, nada faz sentido, nenhuma palavra tem significado.
Nessa verdade, estamos nós e estão os outros. As nossas realidades suportam-se mutuamente como o arco de uma ponte ou qualquer outra certeza da engenharia civil. Quando eles são cegos, nós somos invisíveis.
O contrário, claro, também está certo. Se os nossos olhos os distorcem, não há maquilhagem que os deixe bonitos. Percebemos então que, apesar dos espelhos, nós somos eles. Desagrada-nos a existência deles, queremos anulá-los. Quando é assim, achamos que temos razões para isso, as nossas razões. Eles sentem exatamente o mesmo.
Alegrarmo-nos com o mal dos outros é um alerta. Como a pele amarelada, esse sintoma revela problemas no fígado. Esperar não resolve. Aos primeiros sinais, devemos procurar ajuda.
Os outros somos nós. Esse é o grande segredo, evidente e escancarado, à vista de todos e, no entanto, ainda hoje tão revolucionário: os outros somos nós.
(Fotografia de José Luís Peixoto)
[Publicado originalmente na edição de 3 de julho de 2016]