Poeta, cronista, crítico literário, comentador. E, desde há três meses, conselheiro cultural de Marcelo Rebelo de Sousa. O convite surpreendeu Pedro Mexia, contrário da personalidade efervescente, extrovertida, energética do atual Presidente, em quem não votou. Hoje, faria de maneira diferente.
Traça o autorretrato com versos de Camões. A desilusão, o desapontamento, o ceticismo, a melancolia consubstanciada na adolescência – palavras do poeta ao longo da entrevista. Diz ainda de si: «Não peço a ninguém para ser parecido comigo.»Não o deseja a ninguém. Pedro Mexia tem 44 anos. Estamos num hotel de Lisboa. Ao longo de uma entrevista de duas horas e meia, um único telefonema de Belém interrompeu a conversa.
Não votou em Marcelo Rebelo de Sousa. Se as eleições fossem hoje, reconsiderava?
Já pensei nisso várias vezes. Se a pergunta equivale a saber se, nestes dois meses, tenho gostado da presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, a resposta é sim. Parte da minha relutância face a Marcelo, que exprimi várias vezes no Governo Sombra, prendia-se com o medo de que o lado lúdico, forte nele, fosse incontrolável. Não é isso que tem acontecido. A dimensão mais lúdica que temos visto cumpre uma função, demonstra uma intencionalidade política. E temos percebido que questões melindrosas podem ser abordadas num tom descontraído.
A pergunta é mesmo esta: hoje, votaria nele?
Votaria.
Dois meses com Marcelo Rebelo de Sousa. O que já mudou na sua vida?
Muito pouco. O convite foi feito com a garantia, e até o pedido, de que a minha vida continuasse a ser como era. A gestão do tempo complicou-se, é verdade, mas tem sido bastante fácil ser consultor cultural de alguém que tem um interesse genuíno pelos assuntos culturais.
Há um frenesim marcelista – basta dizer que Marcelo dorme quatro ou cinco horas por noite- com o qual não será fácil lidar. Já recebeu os célebres telefonemas a desoras?
No meu caso, como me deito muito tarde, não é um problema. Nunca me acordou, embora já tenha ligado a horas em que seria normal eu estar a dormir.
Também dorme pouco?
Adormeço tarde.
Dorme então durante a manhã?
Quando posso (riso).
Marcelo é exuberante, energético, «irradia felicidade». Sendo tímido e um pessimista militante, como convive com as caraterísticas efervescentes do Presidente?
Não sou optimista, sou o menos efervescente possível e tenho muito pouco de energético, mas isso não é problemático para a relação com o presidente, ainda mais sendo uma relação profissional. Não peço a ninguém para ser parecido comigo. Aliás, não o desejo a ninguém.
Ao fim de dois meses, confirma o perfil que traçou – um Presidente elitista e populista?
Elitista no sentido de uma pertença social, populista no sentido por exemplo em que levava o cachecol da seleção para um programa de comentário. Marcelo Rebelo de Sousa gosta de agradar, o que me parece bastante mais natural num presidente do que num comentador político. Acho naturalíssimo que o presidente queira agradar às pessoas, mas nem sempre achei natural que um comentador quisesse agradar a todos.
A menos que o comentador quisesse ser Presidente.
É verdade.
Depois da surpresa, percebeu porque foi o escolhido?
O meu espanto resultou do facto de não ser uma pessoa próxima, ou sequer votante e apoiante, do presidente, e não tanto do que me foi pedido. Esta não é uma área que desconheça. Fundamentalmente, julgo que terá agradado a Marcelo Rebelo de Sousa uma escolha que não fosse óbvia.
Marcelo tem um pensamento sobre tudo. Está já preparado para lidar com alguém pouco susceptível a conselhos?
O Presidente faz o que entender com os conselhos. Não haverá lugar a melindres. Nem temo que as posições do Presidente possam confundir-se com as minhas.
Sendo militante anti-acordo ortográfico, houve quem visse já a sua influência nas recentes posições do Presidente sobre o assunto.
Tenho uma posição sobre o acordo que é minha, e que não é sequer coincidente com a do Presidente. Diz bem: eu sou um militante anti-acordo ortográfico. Marcelo Rebelo de Sousa não é. Falámos, é claro, sobre o assunto, mas posso dizer que a forma como a questão foi colocada – sublinhando o problema jurídico da ratificação – é pensamento próprio do Presidente. De resto, a grande parte das críticas que faço ao Acordo são prévias à questão jurídica. O Presidente, em contrapartida, tem de ter uma posição institucional.
Posição que, contudo, não coíbe o Presidente de escrever artigos à revelia do Acordo.
O Presidente é, também, um cidadão. E o cidadão escreve como aprendeu a escrever. Cria algum ruído, é certo, mas um Presidente pode ter os seus gostos.
Que marca deverá deixar Marcelo Rebelo de Sousa na cultura?
Naturalidade é a palavra que me ocorre. Se a cultura faz parte dos interesses e dos gostos de Marcelo, se a cultura faz parte dos gostos e interesses de boa parte da população, e se os agentes culturais procuram o apoio do Presidente, então, a intervenção presidencial na cultura só pode ser tão natural quanto a intervenção presidencial no mundo das empresas ou no mundo da educação. Sempre com a noção de que o Presidente apenas promove, chama a atenção.
No meio, conhece e é conhecido. Já começou sentir as pressões?
Há casos em que tenho conhecimento direto não só das pessoas como do trabalho e das dificuldades em causa. Conhecimento que tomo como uma mais-valia, tanto mais que no âmbito cultural o Presidente tem gostos muito diferentes dos meus. No entanto, a questão do amiguismo não me inquieta; reenvio para o meu e-mail de Belém os e-mails respeitantes às minhas funções que recebo, com frequência, na minha caixa pessoal. Não confundo as coisas.
Que ideias tem já em mente para os próximos tempos?
Algumas de que ainda não devo falar.
Uma marca muito particular de Marcelo nas comemorações deste 10 de junho?
A condecoração à portuguesa que trabalha como porteira de um prédio vizinho ao Bataclan e que ajudou as vítimas na noite do atentado é uma bela ideia, e uma ideia justa.
Leia também: Os abraços de Marcelo e um novo tipo de poder.
Vamos passar a ter um Presidente mais restritivo na atribuição de condecorações?
Tenho a certeza que sim.
Em 2015, recebeu a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. Esperava, vinda de Cavaco Silva?
Fui muito influenciado pela geração de O Independente, logo nunca tive uma relação fácil com a figura política do ex-presidente da República. Nunca votei nele e foram muitas as vezes em que não apreciei a sua atividade pública, até mais como presidente do que como primeiro-ministro. No entanto, tendo em conta o que sei dele, não o considero vingativo, não iria opor-se à condecoração por causa das minhas opiniões. Por isso, o que mais me surpreendeu foi a justificação: as minhas atividades culturais. Enfim, não preciso de muito esforço para lembrar-me de várias pessoas com currículos bem mais relevantes que o meu nessa área.
Os tempos de Cavaco Silva na presidência, sobretudo o último mandato, foram difíceis. Que preço pagou a cultura pela desorçamentação (ainda mais violenta) dos últimos anos?
O preço correspondente ao facto de a cultura ter, em grande parte, o Estado como única fonte de financiamento. Dando exemplos, a ópera ou o cinema português, tendo em conta o mercado, não são possíveis sem uma política de apoio público. Para essas atividades, a penúria orçamental é uma certidão de óbito. O Estado tem a função de corrigir o mercado nessas áreas.
Que medidas podem ajudar à reparação dos danos?
Não sei até que ponto vai haver uma mudança significativa. Sobretudo quando falamos de orçamento. Contudo, independentemente dessa questão, Luís Filipe Castro Mendes foi uma escolha inspirada. É verdadeiramente um diplomata, e tem uma noção concreta de Portugal no mundo e da cultura portuguesa lá fora. Tem trabalho reconhecido no Brasil, e sabe-se o quanto a relação com os países lusófonos, em particular com o Brasil, é fundamental.
Escapa ao estereótipo do intelectual de direita. Considera fundamental a contribuição do Estado na promoção da cultura, e considera a cultura um bem essencial. Como viveu os anos Passos Coelho? Agora, o caminho será outro?
Ponto prévio: o conceito de Ministério da Cultura, e até de super-ministério da Cultura, foi inventado pelo General De Gaulle, com o ministro [André] Malraux. Portanto, a ideia da cultura com peso simbólico e orçamental nasceu à direita. De forma que não há razão substantiva para o paradoxo.
Falamos da direita portuguesa.
É verdade que a direita política portuguesa não manifesta particular apreço pelas questões culturais, também porque sente a cultura como um território hostil. Também a esquerda à esquerda do PS tem o seu: os militares e as forças de segurança, por exemplo. Os governos à esquerda têm, portanto, uma relação mais pacífica com o mundo da cultura, mas para haver um ministro da cultura marcante – e não é por acaso que Carrilho é citado como um ministro marcante, independentemente do que possa pensar-se dele – é necessária a confluência de três fatores: um orçamento minimamente apresentável, uma ideia cultural e a estabilidade no cargo. Ora raramente os três critérios têm estado presentes.
João Soares foi também uma escolha inspirada?
A nossa avaliação da escolha anterior está marcada pelo episódio que levou à demissão do ministro.
Que comentário lhe merece a polémica sobre o Plano para o Eixo Belém-Ajuda, que levou à demissão de Lamas?
Cada governo tem todo o direito de gizar a politica cultural que bem entender e, portanto, de convidar ou de dispensar quem achar por bem. É uma decisão política normal. Talvez a forma tenha sido o aspeto menos feliz.
Que leis culturais aconselharia o presidente a vetar?
Não vou comentar problemas imaginários, mas tem havido alguma legislação problemática. A cópia privada, para dar um exemplo, é uma questão muitíssimo problemática.
Depois de uma breve incursão no CDS-PP de Paulo Portas, pela mão do próprio, vamos vê-lo interessado de novo na política?
Fui leitor e fã de O Independente e na altura, de certa forma, acreditei que o CDS de Paulo Portas poderia ser a forma partidária de O Independente. Uma ilusão, evidentemente. Rapidamente me fizeram notar que sendo militante do partido não podia ter as opiniões que me apetecesse. Portanto, não vai voltar a acontecer.
Como é hoje a sua relação com Paulo Portas?
Mal o conheço, mas sempre foi cordial comigo. Continuo a achá-lo uma pessoa brilhante, mas claro que gostei muito mais do Portas jornalista do que do Portas político.
Voltando a Marcelo: Acha que ele conhece a sua poesia?
Nunca falámos sobre isso.
Será que lê poesia, o atual Presidente?
Não tenho muito conhecimento sobre os gostos literários do presidente, para além do que é público. Sei que tem uma grande biblioteca. E que há uns anos escolheu um volume de poemas para a seleção Poemas da Minha Vida, uma iniciativa do Público.
Já escreveu poemas em Belém?
Geralmente, escrevo pela noite dentro. Espero não estar em Belém a essas horas.
Escreve quase sempre em casa, então.
Durante anos, escrevi em cafés. Depois, habituei-me a escrever em casa.
Faz parte dos viciados em escrita, capazes, por exemplo, de se levantarem a meio da noite para escrever?
Talvez para apontar uma ideia, mas para escrever um poema, não.
O que o inspira?
A uma passagem de um livro, a uma frase que ouvi, uma imagem que retive. Por vezes, escrevo imediatamente. Outras vezes, tomo uma nota que fará o seu caminho. Não há regra.
O que começa como ideia para um poema pode acabar numa crónica e vice-versa?
Pode perfeitamente. Aconteceu agora, na visita a Moçambique: tomei várias notas que, pensei, iriam ser um poema. Acabaram por dar uma crónica.
Faz muitas versões de um poema?
Algumas. Todos os meus poemas publicados foram muito revistos, sobretudo em provas.
Quando escreve, pensa nos poemas já como livro?
Não tenho a noção de livro, e isso é um problema. Alguns dos livros que publiquei sofrem de défice de estrutura porque, precisamente, não foram pensados como livro. Ainda que obedeçam a um agrupamento temático inicial, a estrutura não é o meu forte.
A quem os dá a ler em primeira mão?
À minha editora, Bárbara Bulhosa.
As críticas podem estragar-lhe os dias?
Um escritor inglês, Kingsley Amis, dizia que uma má critica pode estragar-nos o pequeno-almoço mas não devemos deixar que nos estrague o almoço.
De que forma olha para os poemas que escreveu?
Em alguns casos, com embaraço. Não é uma relação fácil, tenho um olhar bastante critico. Na preparação das antologias, por exemplo, fico frequentemente com vontade de que o livro tenha cinco poemas em vez de cem. Não é muito comum reler-me e ficar muito impressionado comigo próprio.
Comove-se com alguns dos seus poemas?
A poesia comove-me com facilidade, a ponto de já ter passado por situações embaraçosas. Em regra, é mais uma emoção biográfica. O que nos aproxima verdadeiramente de um poema é a relação que ele tem com a nossa vida.
O que pode levar a interpretações surpreendentes. Já aconteceu com alguns dos seus poemas?
Recordo um caso especial, sobre o poema Os dez mil, baseado num episódio da literatura clássica descrito por Xenofonte (o regresso das tropas a casa depois de uma derrota). Um dia, encontro uma pessoa que me disse ter gostado muito do livro, sobretudo do poema sobre “os retornados do Ultramar”. Não neguei que o poema fosse sobre isso, obviamente, embora não fosse.
Que poetas incluiria numa genealogia poética?
Há grandes poetas, Herberto Helder, por exemplo, de que gosto muito mas que não fazem parte da minha família poética. Dos que têm a ver com a poesia que me interessa, escolho Cesário Verde, Álvaro de Campos, Alexandre O’ Neill, António Osório. Sinto com eles uma afinidade muito grande. A linguagem e os temas são-me muito próximos. É a família em que me reconheço.
Somos um país de poetas?
A expressão é duvidosa mas revela uma verdade: a nossa literatura, e dentro da literatura a poesia, é a nossa forma mais forte de expressão cultural; desde Cesário Verde até hoje, desde final do século XIX até aos inícios do século XXI, não nasceu uma geração que não tivesse grandes poetas. E isto não é comum nem verdade para todos os países.
O que lhe interessa na poesia?
A concisão memorável. Dizer com poucas palavras alguma coisa que fique na memória. A mesma lógica que está por detrás de uma piada, de um provérbio, de um aforismo. Exprimir, de forma concisa, alguma coisa que seja memorável.
É por isso que os versos se decoram?
Por isso mesmo. Aquelas palavras, naquela ordem, tornam-se memoráveis. Por isso se diz que a paráfrase do poema destrói o poema.
E é também por isso que é tão difícil escrever sobre poesia?
Pode perder-se o fascínio. O fascínio dos poemas tem muito a ver com aquelas palavras em concreto. Um dos versos mais conhecidos da poesia portuguesa -«Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…», [Camilo Pessanha] – fica na cabeça pelo uso inusitado do diminutivo. E é desse lado memorável que eu gosto na poesia.
A poesia salva mais do que uma aspirina, ou não faz nada acontecer?
A minha tendência é estar do lado das baixas expectativas em relação à poesia. Se bem que alguns dos poetas de que mais gosto estejam muito distantes desse cepticismo – penso nos poetas românticos, por exemplo, ou até em alguns poetas do século XX, como [William Butler] Yeats – há um lado na poesia que me interessa muito e que tem a ver com o desconcerto do mundo, com a decepção. Lembro-me de T. S. Eliot. Uma certa noção de impotência da poesia ou da linguagem face ao mal e ao sofrimento. Não, não tenho uma visão entusiasmada. E tenho pena de não ter. O século XX foi de grande suspeita em relação à linguagem.
Porém, escreve poesia.
Sim. O cepticismo, levado às últimas consequências, deveria levar a que não se escrevesse.
Com que idade começou a escrever?
Na adolescência. Mas textos mais ou menos «literários» só aos 17, 18 anos.
Como era então a sua poesia?
Imitava os poetas de que gostava. García Lorca, Paul Éluard, E.E. Cummings.
Sabe de cor algum desses primeiros poemas?
Sei de cor pouquíssimos poemas, e nenhum deles é dos meus poetas preferidos.
Quais são as memórias mais antigas que tem da poesia?
Nasci numa casa com livros, com a literatura e a poesia sempre presentes. Ainda que o gosto poético do meu pai fosse muito diferente do meu, a poesia nunca foi um «objeto estranho». Contudo, só começou a ser verdadeiramente importante para mim por volta dos 18 anos.
Por que motivo nunca arriscou a ficção?
Porque não tenho imaginação. Não sou capaz de inventar do nada, não tenho esse dom. E a alternativa, que seria escrever uma autobiografia com nomes inventados, parece-me problemática. Deontologicamente, não me agrada
Na poesia, os temas são estritamente pessoais, por vezes de cariz confessional. Faz sentido, em alguém tão reservado e fechado?
Sou reservado e fechado socialmente. A escrita é outro território.
Em Memória é uma viagem benigna à infância, «arena de jogos». Os «primos migratórios», as férias na Figueira da Foz. Fale-nos desses anos.
Sim, trata-se de uma viagem inteiramente benigna a uma infância feliz. Diz-se que ter uma infância feliz não é bom para a criação artística; então eu não vou a lado nenhum. Só tenho boas memórias da infância. Nasci em 1972 e esses primeiros anos parecem saídos de um episódio do Charlie Brown – um pouco melancólicos e parados, mas sem infelicidade. Os dois canais de televisão, as alcatifas, as iogurteiras, imagens de uma vida muito pacata.
Onde vivia?
No Saldanha, onde sempre vivi.
«(…) as ruas baixinhas, quase de brinquedo, as multidões sempre pequenas, os vestígios da praia ainda no corpo ao fim do dia, entre um gelado e a caixa dos bonecos». Tem uma ligação muito forte à Figueira da Foz e aos avós maternos.
Estive sempre muito próximo do lado materno da família, até por razões práticas – passava as férias de Verão na Figueira e na Lousã, onde os meus avós tinham uma casa que ainda existe. Tenho recordações muito fortes dessa casa e das brincadeiras com os meus primos.
A avó Leonor é uma figura central. Até que ponto?
Era uma pessoa que vinha de um mundo diferente. Íntegra, discreta, estóica.
Uma família com ligações à aristocracia. O que admira nas monarquias?
Nunca tive nenhum sentimento de estar «ligado à aristocracia». Sou pouco dado a genealogias e brasões. A monarquia é uma herança de família. O que admiro nas monarquias (constitucionais) é a continuidade, o dever, a ligação entre o passado e o futuro.
O pai, o escritor e critico literário João Bigotte Chorão, é de ascendência italiana. Reconhece em si alguma característica italiana?
Mais uma vez, nunca tive grande noção disso. Mas o meu pai é muito italianófilo, de facto. E não há povo com tanta noção do belo, aprecio isso.
Que tipo de menino era?
Sempre muito low profile, muito pacato, muito metido comigo. Nesse sentido, muito filho único. Brincava muito com soldadinhos e com os playmobil.
Que papel desempenhava, nessas brincadeiras?
É a primeira vez que penso nisso. Sempre gostei de pôr as pessoas a falarem umas com as outras. Não será uma pulsão teatral mas, é verdade, sempre gostei de diálogos. Gosto particularmente de filmes em que há longos diálogos, os de [Éric] Rohmer, por exemplo. Pôr pessoas a falar era algo que me agradava. E agrada. Gosto imenso de moderar debates.
«Era a minha altura. Um livro/em cima da cabeça marcava/o lugar que um lápis semestralmente/riscava na parede da cozinha». Recorda-se dessa cozinha?
A cozinha de casa dos meus pais.
Que cheiros, que sabores, lhe associa?
Mais cheiros que sabores. Gostava de ser mais proustiano para poder fazer um relatório. De repente, não sei dizer quais, mas tenho-os guardados. Assim como tenho uma sensação forte da vida doméstica num apartamento. Aliás, as imagens mais fortes que guardei são de cidades, de casas, de móveis.
Mais fortes do que as da praia ou de outros cenários naturais, próprios das memórias de infância?
Tirando a praia da Figueira, tive sempre uma relação muito problemática com a natureza. Não é o meu meio natural.
«Agora sou tão mais alto e mais pequeno» é o verso final do poema A minha altura. Os seus poemas «fecham» muitas vezes com tristeza, melancolia, angustia. Ganhou-as na adolescência, território propício?
Talvez devido à minha educação literária, a certa altura incorri num excesso de expetativas que redundou em alguns episódios muito significativos de desilusão, decepção e desapontamento.
Diz frequentemente que passou de criança a velho. A que ponto iam as tais expectativas?
A adolescência foi um período expectante. Os poemas que eu lia, e com os quais me relacionava, anunciavam possibilidades que, percebi depois, não iriam acontecer. Tivesse eu sido ininterruptamente céptico e pessimista e ter-me-ia poupado a alguns dos tais episódios.
De que esperava?
Não sei definir, sei que estava à espera de qualquer coisa que não aconteceu. Esse foi um período em que a minha dimensão melancólica se consubstanciou.
Não quer concretizar?
Um exemplo mais recente: de 2007 a 2014 quase não escrevi poesia. E não escrevi porque a achava falsa. A minha relação com a literatura e a minha educação literária pressupunham que as razões que levam alguém a fazer uma coisa são muito importantes. Mas depois, na verdade, são acasos, caprichos, coisas aleatórias.
A realidade não é poética o bastante?
É isso. E, nesse sentido, escrever poesia é estar a falar de uma coisa que não tem relação com a vida. E não só por causa da linguagem. Também pela maneira como se vê o mundo.
A escolha de Direito foi resultado das expectativas desfeitas?
Eu gostava de Filosofia mas também sabia que dar aulas não era a minha vocação. Literatura, estranhamente, nunca me passou pela cabeça estudar. Houve uma altura que me permiti pensar que seria escritor, mas sabia que não se vive dos livros. Portanto, dentro das Humanidades, Direito foi uma saída óbvia. E, devo dizer, até talvez ao 3º ano gostei. Depois, percebi que o curso não me interessava.
Foi aluno de Marcelo Rebelo de Sousa. Era um bom professor?
Era um professor espectacular, teatral. Tive professores melhores, mas nenhum tão fascinante.
Já então era descrito assim: muito reservado, pouco sociável, muito cuidadoso, capaz de controlar o que diz. Muitíssimo educado. O que é que nesses anos o fazia perder a cabeça?
Fazia e faz: tentativas de intromissão na minha vida e manifestações de superioridade moral.
Mais:«triste, olhar bondoso».
Tudo o resto já ouvi muitas vezes. Olhar bondoso nunca tinha ouvido. Mas agrada-me.
Lisboa, anos 90. Como eram os seus dias?
Eram de deambulações por Lisboa. Cafés, cinemas, livrarias.
Tempos marcados pel’ O Independente.
Significou para mim o aparecimento de uma direita conservadora mas não reacionária. Pacificada com o mundo moderno. Irónica, cosmopolita, arejada, provocadora, culta. Teve uma influência enorme no meu percurso intelectual.
Já então, alguns dos seus gostos musicais surpreendiam.
Tenho uma faixa estreita de gostos musicais. Mas, dentro dessa faixa, estou atento. Música de guitarras, essencialmente, dos Velvet Underground aos Franz Ferdinand e a coisas mais recentes. Tenho alguns gostos improváveis, gosto muito de punk. Mas isso não obriga a vestir de determinada maneira ou a ter determinada atitude. A minha banda favorita é os The Smiths e nem por isso sou vegetariano ou homossexual.
É verdade que é capaz de assistir a concertos sem mexer um músculo?
Não tenho esse impulso físico. Sou muito contido. Mas já fui avistado a saltar. E mais do que uma vez. No Primavera Sound, por exemplo.
E os golos do Benfica, festeja-os?
Festejo, claro.
A auto-depreciação, por vezes física, sobretudo em crónicas, é uma necessidade?
Divertia-me, era uma coisa fácil. Foi uma fase. Mas continuo hostil a qualquer ideia de «auto-estima».
Nos seus poemas, o amor escapa ao mundano. Disse numa entrevista sobre o amor: «são duas pessoas abraçadas numa espiral, na eternidade». Um paradigma elevadíssimo.
Um paradigma poético. Um erro crasso.
As mulheres nunca são carnais?
Nos poemas, não muito. Muitos dos poetas de que mais gosto escreveram poemas de amor dedicados a mulheres com as quais tiveram relações ténues. Eram abstrações, e o paradigma era uma beleza mais etérea.
Na poesia e também no cinema. Grace Kelly, Audrey Hepburn são esse paradigma da beleza?
Sim, nunca as Raquel Welch da vida. O cinema cria relações afetivas com imagens. Objectifica uma atriz, faz dela um objeto visual. E a imaginação erótica é, em parte, um mundo de fantasmas. Os textos de Bénard da Costa foram uma grande aprendizagem para mim. E neles, a relação com as mulheres é fortíssima. É evidente que trazer isso para a vida pode causar patologias graves. Mas, do ponto de vista da minha imaginação visual e estética, sinto-me muito confortável. A vida concreta tem uma dimensão que é fantasia e uma outra que não é. Nem sempre tenho sido a pessoa mais hábil a distinguir a fantasia da vida real, confesso.
E isso é um problema.
É um problema gigante. A literatura é a vida real? Num certo sentido sei que não é, mas, por outro lado, acho que é. Quero que seja. Quero que a vida seja assim. Levando isto até ao fim, desemboca-se numa forte frustração. Oscar Wilde disse que o problema de acabar um romance de Balzac é que a seguir vamos conversar com os nossos amigos e eles não são tão interessantes como as personagens de Balzac.
Há filmes onde gostaria de viver?
Gostava de viver em várias casas dos filmes de Woody Allen.
E há filmes de onde sairia correndo?
Dos de John Cassavetes, cineasta de que gosto muito. Mas pessoas bêbedas a gritar é uma coisa que detesto.
Das mulheres, e do amor, para Deus. O seu pessimismo tem a ver com «o para cá da morte». Reconforta-o pensar que há «o para lá da morte»?
Não vejo isso como um conforto. Acredito, mas não sei bem o que é isso em que acredito, em termos racionais não faz nenhum sentido, é um salto no escuro, uma aposta improvável.
Hoje, o mundo é melhor e mais decente do que há uns séculos. Está no bom caminho, sejamos optimistas.
O mundo está hoje genericamente mais decente do que em épocas passadas, não nego isso. O que nego em absoluto é que o homem de hoje seja melhor. Enquanto humanos, não progredimos. Quase tudo o que temos de bom devemo-lo à civilização. Mas a civilização é uma forma de repressão da nossa natureza.
Deve lutar-se – e é possível lutar-se – por sociedades melhores.
Deve lutar-se por sociedades melhores, não se deve lutar por sociedades perfeitas. A procura da perfeição deixou um rasto de cadáveres. A ideia de que vai haver um estádio sem violência ou sem exploração, um estádio em que o ser humano vai ser como nunca foi em nenhum outro momento da História, é uma ideia na qual não acredito. É, de resto, uma ideia perigosa- o caminho entre essa espécie de boa vontade e os Pol Pot deste mundo é estreito.
No entanto, o desígnio maior de um católico é a procura da perfeição: amar ao outro como a nós mesmos.
Há dois pontos claros para um católico: por um lado, a noção de pecado original, de que o homem não é perfeito; e, por outro lado, a noção de que há modelos de perfeição. Os santos, na sua tremenda diversidade, são modelos de uma vida vivida de acordo com o paradigma que Cristo instituiu. Há portanto, no cristão, a debilidade natural e a possibilidade de aperfeiçoamento.
Bento XVI e Francisco olham para a igreja de forma muito diferente. O primeiro propôs uma igreja de ‘puros’, o segundo convoca uma igreja inclusiva. São posições conciliáveis?
Acredito que sim. Mas as duas posições estão presentes na história da Igreja. Julgo que a Igreja deve dialogar e ter uma relação pacífica com o tempo em que vive. Mas há no cristianismo um lado inegociável. As convicções da Igreja não podem depender da sondagem da semana.
Nasceu em Lisboa. A cidade tem sido um bom sítio para viver?
Adoro Lisboa, mas não tem sido agradável viver na cidade nos anos da crise. Na última década, sentiu-se uma acrimónia muito acentuada. Pessoas que se incompatibilizaram, amizades que se desfizeram, enfim, o ar tornou-se bastante irrespirável. As causas desse ambiente são económicas mas, também, políticas. Uma certa polarização, que foi transformando as pessoas em animais ferozes. Uma das coisas que mais me agradam no Governo Sombra é ver que um marxista, um liberal e um conservador podem falar sem precisarem de se zangar. Gosto muito da cidade mas não posso dizer que a última década tenha sido uma década agradável.
É um flâneur…
Gosto de passear pelo Chiado. Embora a minha zona seja o Saldanha, a Baixa pombalina é o meu itinerário favorito.
Nessas deambulações, há um destino particular?
Agora cedi à tentação dos alfarrabistas. Tornei-me perigosamente bibliófilo. Não sou ainda hard-core mas já ando por aí atrás dos livros. Resisti o mais possível a comprar na internet e a frequentar alfarrabistas, precisamente porque sabia que seria uma perdição. Agora, já recebo telefonemas em que me dizem «tenho aqui uma coisa de que vai gostar». Como os dealers. Considero-me contudo num nível ainda incipiente. Conheço quem tenha a doença em estado avançado.
A procura já ultrapassou Lisboa?
O Porto apanhou-me primeiro. O Porto tem bons alfarrabistas.A única coisa em gasto disparatadamente dinheiro é em livros. Não me imagino a gastar assim noutra coisa.
Compra sobretudo poesia?
Oitenta por cento é literatura. Desses, dois terços são poesia.
Domingos. «Os domingos de Lisboa são domingos terríveis de passar» .
O domingo em Lisboa era, e julgo que ainda é, o dia mais melancólico da semana. A cidade está parada. Nos meus poemas há muitas referencias aos domingos, aos domingos em Lisboa.
O Governo Sombra acrescentou-lhe notoriedade. Como lida um tímido com a possibilidade de ser reconhecido na rua?
Gosto muito dos e-mails que recebo por causa das crónicas. Em contrapartida, não tenho qualquer relação com a ideia de popularidade. Ao longo destes anos, fui abordado de forma desagradável na rua uma única vez. E por uma senhora que percebeu mal o que eu disse.
Curioso, parece particularmente à-vontade em frente às câmaras. No programa, esquece-se de que está na televisão?
Quando o programa passou da rádio para a televisão não foi fácil. Com o tempo, a sensação de desconforto foi desaparecendo. Hoje estou mais à-vontade na televisão do que noutras situações sociais.
É um solitário?
Da mesma maneira que não gosto de estar com 20 ou 30 pessoas, gosto muito de estar com duas ou três. Gosto de restaurantes, de almoçar e jantar com amigos. Mas gosto de estar em casa, onde escrevo e leio, sobretudo à noite. A minha falta de à-vontade social mantém-se, mas estou no meu pico de sociabilidade.