A história da batalha e das condecorações atribuídas por Hitler a quatro algarvios.
Em 1943, Adolf Hitler condecorou quatro algarvios que tinham resgatado os corpos de sete aviadores nazis abatidos por caças ingleses nos céus de Aljezur. Agora, passados 73 anos, foram finalmente descobertos os relatórios confidenciais do combate que Salazar tentou esconder. Memórias da única batalha portuguesa da Segunda Guerra Mundial. Antes que desapareçam as últimas testemunhas.
Nos últimos dias de dezembro de 2015, José Marreiros entrou no sótão dos antigos Paços do Concelho de Aljezur – onde hoje funciona o Museu Municipal – e deu de caras com um amontoado de objetos antigos, registos documentais, livros do tempo da monarquia. «Caramba», proclamou nervoso o presidente da Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur (ADPHAA). «Acho que encontrei um tesouro.» Havia registos de população, forais outorgados à pena, balanças das medidas de alqueires, cartas de toda a espécie. Nos meses seguintes, o homem preocupou-se em retirar dali os achados, levá-los para o arquivo municipal, na mesma rua, e catalogá-los devidamente. Há um par de meses, quando arrumava o último canto de papelada, duplicou a surpresa: ali estava toda a correspondência expedida e recebida pelo município ao longo dos séculos. Cada maço de papéis estava embalado com a indicação do ano de emissão. Marreiros nem hesitou: foi direito a 1943. Ali, no meio das teias de aranha e da parca iluminação, jaziam as explicações e os relatórios confidenciais para os eventos de 9 de julho. Setenta e três anos depois, era finalmente possível reconstituir ao pormenor o dia em que a Segunda Guerra Mundial chegou à Costa Vicentina.
Existem na ala oeste do cemitério da vila sete campas de aviadores alemães abatidos por caças ingleses nesse dia. Salazar, como se há de perceber mais tarde, tentou esconder o episódio que punha em causa a neutralidade portuguesa no conflito. Mas era impossível abafá-lo completamente. Centenas de pessoas tinham visto o combate sobre os céus de Aljezur, dezenas tinham acorrido ao local onde o grande bombardeiro nazi se despenhara, muitos tinham comparecido ao funeral mais pomposo que a terra alguma vez tinha visto. E havia as campas, com os nomes e os postos militares, em alemão, a provarem que o território português não escapara à guerra.
Ao longo dos anos, vários investigadores socorreram-se dos testemunhos para tentarem reproduzir aquela história danada. Primeiro o alemão Eberhard Wilhelm, professor de Filologia Alemã Antiga na Universidade de Lisboa. No final dos anos oitenta, recolheu declarações e documentos valiosos na Alemanha, que ajudavam a revelar o que estava cada vez mais esquecido numa publicação do município chamada Espaço Cultural. E depois há José Augusto Rodrigues, membro da ADPHAA, um apaixonado por História que fez um trabalho notável de recolha de documentos, relatos e fotografias antigas. Revelou as suas pesquisas no livro A Batalha de Aljezur, publicado pela Junta de Freguesia de Aljezur e já na terceira edição. A reportagem que o leitor está a ler, ainda que apresente factos desconhecidos, deve muito contexto a estas investigações.
Em janeiro de 1943, a guerra tinha-se estendido ao Norte de África. As tropas aliadas preparavam-se para ocupar o Sara Ocidental, ou Marrocos espanhol, uma provocação a Madrid e, consequentemente, a Berlim. Era frequente saírem do porto de Southampton, no Reino Unido, navios carregados de mantimentos e munições para abastecer os soldados estacionados em Gibraltar, de onde partiria a ofensiva. Desciam por Finisterra junto à costa portuguesa, dobrando o cabo de São Vicente para fazer a aproximação ao Mediterrâneo.
Às sete da manhã do dia 9 de julho de 1943, os faroleiros de Sines avistaram «um comboio de quatro navios cargueiros comboiados por dois destrieres [torpedeiros] que navegavam de Norte para Sul fora das águas territoriais», lê-se no relatório confidencial enviado no dia 14 pelo presidente da autarquia, Francisco Albano de Oliveira, ao Ministério do Interior – e que foi agora encontrado no sótão do museu. Luís Proença lembra-se como hoje de ouvir o barulho dos aviões. Tinha 9 anos, a escola acabara há dias, era período de férias. Nesses tempos, eletricidade não havia e as jornas cumpriam-se de sol a sol, mesmo para as brincadeiras. Ainda a madrugada se esbatia em lusco-fusco quando o ruído dos motores rasgou o céu. «Eu vivia muito perto do castelo, saí de casa e desatei a correr para subir as muralhas», conta agora. «Quando cheguei lá acima vi passarem mesmo por cima da minha cabeça quatro bombardeiros enormes, em formação, a baixa altitude. Vinham da serra de Monchique.» Eram realmente enormes. Os quatro Focke-Wulf 200, conhecidos por Condores, tinham uma envergadura de 36 metros cada, estavam equipados com quatro bombas de 250 quilos em cada asa e canhões de tiro frontais. Desenvolvidos como aviões de passageiros nos anos trinta, tinham sido adaptados pela Luftwaffe a bombardeiros de reconhecimento marítimo, capazes de cumprir missões de longa distância.
Segundo os relatórios da Força Aérea Alemã recolhidos por Eberhard Wilhelm, os aparelhos haviam descolado às três e meia da manhã da base de Bordéus-Merignac, na França ocupada. Na véspera, os sete tripulantes do avião que haveria de ser abatido tinham tirado uma fotografia junto à aeronave, na qual estão também dois técnicos que nunca chegaram a embarcar. A lei das probabilidades diz que terão sido os serviços de espionagem a detetar o comboio de navios ingleses e enviar os Condores. E, de facto, nos meses seguintes, a PIDE prenderia Francisco Garcia Regêncio, sob acusações de espiar para os nazis. O chefe do Farol do Cabo de São Vicente, em Sagres, tinha acesso a toda a informação recolhida pela Marinha Portuguesa e possuía um emissor de rádio sem fios fornecido pela Legação Alemã, a representação diplomática em Portugal. Permaneceu na prisão do Aljube até ao final da guerra, mas sem acusação formal. A bem do estatuto de neutralidade, Lisboa não podia admitir um cúmplice do Reich nas suas Forças Armadas.
Pouco depois de os Condores sobrevoarem o castelo de Aljezur, começaram as rajadas. «Ao nascer do Sol foi ouvido forte canhoneio dando a impressão de que os navios estavam sendo atacados e se defendiam», conta o relatório agora descoberto
No Rogil, junto à falésia, António Novaes-Henrique ouviu o barulho e correu a esconder-se debaixo das árvores. «Não era a primeira vez que apareciam aqui esquadrilhas de combate e às vezes apareciam vacas mortas pelos tiros dos aviões. Eu tinha 6 anos, estava na rua, mas corri para a única segurança possível.» E, do topo da falésia, viu tudo. Os Condores largavam bombas sobre os cargueiros, mas não podiam descer muito por causa dos tiros dos navios. Acertavam na água. «Ao serem percutidas no mar, as bombas mataram milhares de peixes e proporcionaram uma inesperada safra para as gentes da orla costeira», refere José Augusto Rodrigues no seu livro.
Mais de meia hora demorou o combate, uma eternidade de tiroteio entre Sines e Sagres. Novaes-Henrique conta como os bombardeiros alemães davam voltas na terra e voltavam à carga, uma e outra vez. «Uns atacavam por sul, outros pelo norte, e passaram muito tempo nisto. E de repente apareceram três caças ingleses para apoiar os navios. A partir daí, a batalha não durou mais de dez minutos.» Alertados pelas embarcações aliadas, chegaram três aviões – dois Bristol Beaufighters com base na Cornualha mas que cumpriam missões de vigilância no Atlântico e um Lockheed Hudson que levantou voo de Gibraltar. Foi um dos Beaufighters, pilotado pelo sargento J.M. McLeod, que desferiu o golpe fatal num dos bombardeiros nazis.
Para explicar o que aconteceu o melhor é o leitor imaginar um arco de tiro ao alvo. O cabo de madeira em forma de meia-lua representa a baía que a orla costeira forma entre a Carrapateira e a Arrifana. A corda que impulsiona a flecha indica a direção que o Condor alemão cumpria quando foi atingido. Para fugir aos tiros do aparelho nazi, o Beaufigther inglês avançou rente ao mar e conseguiu enfiar-se no espaço entre o cabo e a corda, operar uma subida arriscadíssima junto à falésia e atingir o bombardeiro alemão nos depósitos de gasolina, localizados na barriga do aparelho, entre as asas e a cauda. As chamas tomaram imediatamente conta da asa direita. O comandante Gunther Nikolaus ainda tentou conduzir o aparelho para terra, mas era tarde de mais. O Condor haveria de se despenhar contra o paredão que existe na ponta da Atalaia, junto à Arrifana, e a explosão ouviu-se por toda a Costa Vicentina. Pum…
O quartel da Guarda Fiscal da Arrifana ficava a meio quilómetro do local onde o Condor caiu. Ernesto Silva, então com 5 anos, passava ali férias com o avô – Vitorino Cuco era o chefe do posto. «Quando começou o tiroteio escondemo-nos todos dentro de casa, como se isto servisse de abrigo contra bombas», conta agora junto às ruínas do edifício. «E depois só me lembro da explosão. Até as paredes tremeram.» Passaram uns bons minutos até o avô se aventurar para fora de casa. «Ele contava, anos mais tarde, que viu os outros três Condores nazis passarem por ali para confirmarem a perda da aeronave. E depois bateram em retirada por levante.» Os caças britânicos também abandonariam a região em minutos, em direção a Gibraltar. Nos penhascos, uma montanha de ferro retorcido ardia.
Vitorino Cuco foi quem soou o alarme. Notificou por rádio a sede de comando e montou imediatamente postos de sentinela, para impedir que a população se aproximasse. Havia bombas que estavam por detonar.
O relatório confidencial encontrado há meses esclarece um cenário dantesco. «O aparelho sinistrado apresentava-se completamente destruído. Os tripulantes apresentavam um horrível aspeto, carbonizados, nus, irreconhecíveis, vendo-se no entanto, na fivela dos cintos, a águia e a cruz suástica»
Os primeiros a aparecer foram o presidente da Câmara e o delegado de saúde. Depois veio um juiz de paz, a Guarda Republicana e a Legião Portuguesa. Ao mesmo tempo, em Lisboa, o governo contactava a Legação Alemã para informar que os corpos iriam ser retirados do avião e sepultados em Aljezur. Nesse mesmo dia, apresentava credenciais na capital portuguesa o novo adido de aeronáutica nazi – Johannes Hashagen. A sua primeira medida foi enviar o seu número dois a Aljezur. O major Spiess chegaria às nove da noite ao Algarve, para coordenar com as autoridades locais as celebrações fúnebres. E este é que era o problema de Salazar. O presidente do Conselho tinha de permitir as exéquias, mas não lhes podia dar alarido. O equilíbrio entre esses dois pratos da balança exigia do ditador português a perfeição diplomática. Um passo em falso nos dias seguintes podia determinar a entrada do país na guerra.
Do alto da Ponta da Atalaia, Ernesto ia observando os trabalhos. «O meu avô e o delegado do concelho é que comandavam os guardas. Primeiro trataram da remoção dos corpos, depois viram que havia algumas bombas por explodir, umas na praia, outras na falésia.» Na verdade, no dia seguinte chegaria à Arrifana um pelotão de minas e armadilhas e detonaria os engenhos. «Mas o problema principal era como levar os cadáveres para Aljezur, porque aqueles eram caminhos de cabras onde uma carrinha não conseguia chegar.» Cuco pediu emprestada uma carreta de bois a um monte dos arredores. Levá-los-ia o coveiro da terra, Pedro Gamboa. «Os cadáveres, em número de sete, foram embrulhados em serapilheira e conduzidos para a Igreja Matriz – onde foram amortalhados em pano branco», diz o relatório.
A notícia de que aí vinham os corpos de sete alemães voou por Aljezur à velocidade de um tiro. Luís Proença, que tinha nessa manhã subido às muralhas para ver os bombardeiros, convocou os miúdos da rua. «Vêm aí os aviadores nazis, vêm aí os aviadores nazis.» Ia a tarde a meio e a canalha correu vila abaixo até ao cruzamento da Bagagem, que os bois não tinham outro caminho por onde chegar. «E então vi-os, empilhados uns por cima dos outros na carroça, tapados com panos. Lembro-me de espreitar e ver um pé e uma mão, completamente negros, completamente retorcidos, completamente carbonizados. Fiquei ali paralisado sem dizer uma palavra. E nunca apaguei aquela imagem, de vez em quando ainda me vem visitar os pesadelos.»
No dia 11 de julho de 1943, ao meio-dia em ponto, saiu da igreja matriz o cortejo fúnebre. «À frente as crianças das escolas com galhardetes e estandartes, a seguir os prelados católicos, depois as urnas ladeadas por meninas com bouquets de flores naturais e uma senhora à cabeceira de cada urna conduzindo coroas de flores artificiais. Seguia-se o Corpo Diplomático alemão e presidente da Câmara, seguido pelo funcionalismo público, Guarda Republicana, Guarda Fiscal, Legião Portuguesa e o povo», lê-se no relatório secreto do presidente da câmara, Albano de Oliveira. A cerimónia foi pomposa, a maior que Aljezur alguma vez tinha visto. Mas nem Salazar nem nenhum membro do governo tinha comparecido.
O lado alemão tinha-se feito representar ao mais alto nível. Veio o barão Von Hoyningen-Heune em representação de Hitler, o embaixador da Alemanha, os adidos militares e aeronáuticos, os delegados portugueses do Partido Nacional-Socialista e da Juventude Hitleriana. De Portugal o aparato compôs-se das autoridades municipais e pelo comando militar de Lagos. As urnas de chumbo, revestidas a mogno, foram custeadas pela autarquia. E, quando os corpos de Gunther Nikolaus (comandante), Hans Weigert (piloto), Walter Beck (radiotelegrafista), Martin Angerman (mecânico), Johann Bauer (artilheiro), Wener Riecke (radiotelegrafista) e Ernst Herppich (escoltador) desceram à terra, alguns militares portugueses acompanharam os alemães na saudação nazi.
Mais tarde, o embaixador alemão dir-se-ia agradecido por todas as amabilidades que o Reich recebera em Aljezur e indicou a Berlim a vontade de condecorar quatro individualidades da terra
As notícias da queda do avião nazi e dos funerais chegariam a Lisboa sem estrondo. Nas edições d’O Século e do Diário de Notícias destes dias há páginas cheias sobre os combates entre Aliados e o Eixo, mas as referências ao episódio de Aljezur são secas. Não ocupam mais de três linhas nas edições do dia, nem fazem qualquer referência a um combate. «Todas as noites a população juntava-se na Casa do Povo para ouvir as notícias na rádio», conta Luís Proença. «Havia um aparelho que funcionava a gerador e à volta do qual se juntava toda a gente para ouvir a Emissora Nacional e as reportagens do Fernando Pessa na BBC. Mas, para nosso espanto, ninguém falou da queda dos aviões. Nem dos funerais. Era como se nada tivesse acontecido.»
Na visão de Novaes-Henrique, o episódio mudaria a posição das pessoas da terra em relação ao maior conflito bélico da história da humanidade. «Este era um povo muito pobre e muito inculto, que trabalhava à jorna na safra do trigo e da batata-doce e nos meses de calor partia para as mondas do arroz, sujeito a todo o tipo de doenças», diz o homem, reformado da Armada, um apaixonado de histórias de guerra que guarda em casa uma coleção de capacetes militares da Segunda Guerra Mundial. «A geração anterior tinha cumprido serviço na Guerra de 1914-18, por isso a maioria era contra os alemães.» Quando o avião caiu, diz ele, o temperamento mudou. «Para esta gente, aqueles rapazes não eram aviadores nazis, eram uns pobres coitados que tinham sofrido uma morte horrível, na flor da idade. Então ouvia-se cada vez mais gente a falar mal dos ingleses, que nos tinham abandonado há trinta anos nas trincheiras de França e agora vinham para aqui causar estragos na nossa terra.»
Em dezembro de 1943, após dois meses de grande insistência da Legação Alemã em Lisboa, o ministério dos Negócios Estrangeiros autorizou que quatro cidadãos portugueses fossem agraciados com a Ordem da Águia Imperial Nazi. Na correspondência agora encontrada no sótão do Museu Municipal percebe-se que houve uma negociação intensa com o Ministério do Interior – e que Lisboa só autorizaria as homenagens mediante condições. Vitorino Cuco, o chefe do posto da Guarda Fiscal da Arrifana, José Viriato-França, comandante da Legião Portuguesa em Aljezur, Amândio da Luz Paulino, administrador do concelho, e o próprio Albano de Oliveira, presidente da câmara, envergariam as insígnias de Berlim.
Uma carta marcada como confidencial do Governo Civil de Faro, enviada a 23 de dezembro para o autarca da vila, marca a cerimónia para daí a cinco dias. «Informo que o Senhor Ministro do Interior autoriza o ato solene de imposição das condecorações alemãs às entidades desse concelho pela forma diligente como procederam aquando da queda de um avião. Mas reservamos que o ato ocorra no salão nobre da Câmara, sem alardes ou publicidade, devendo assistir somente o oficial superior da região. Não é demais toda a reserva que se observe acerca deste ato.»
Hoje, há uma comenda guardada nos arquivos do ADPHAA e outra na posse de Ernesto Silva, o neto do comandante do posto da Guarda Fiscal que viu tudo na Arrifana. As medalhas têm quatro suásticas cada, estão guardadas em caixas vermelhas com uma figura da águia sobre um símbolo nazi impresso a dourado. Mas provavelmente o mais impressionante de tudo é o diploma, escrito em alemão e assinado pelo punho do Führer. Ernesto transporta-o com cuidado até ao local onde tudo aconteceu, o documento vem dentro de um envelope amarelado mas os dedos tremem-lhe à visão da assinatura do documento. «O meu avô nunca gostou muito disto, e sempre disse que não havia honra em ser condecorado por um homem mau. E ele deixou-me isto em herança, que havia de ser eu a guardar a medalha e o diploma, porque sou bom contador de histórias.» Suspira e atira: «Mas sempre que abro este envelope, sempre que me lembro do que foi a guerra, sinto-me mal.» Passa os dedos pela inscrição nazi, depois pelo nome de Hitler, e suspira outra vez. «Até arrepia.»