Quem disse que há coisas que não se misturam? Livros e comida, por exemplo. Quem disse que numa cozinha não podemos ter livros? Sim, livros de culinária, claro. Mas não falo desses, falo dos outros, daqueles que alimentam o espírito, não o estômago.
Tal como uma refeição pode ser uma obra de arte, assim também um livro pode matar-nos a fome. Ao seu escritor, em primeiro lugar. Se vender muito. A perspectiva prática da coisa, que um escritor também tem de comer. Como será a sua cozinha? Cheia de livros, como a cozinha da foto? Ou será esta a biblioteca de um cozinheiro?
As plantas de uma casa têm sempre cozinha, mas raramente têm biblioteca. Quem decorou a divisão da foto há-de ser uma alma subversiva, atrevendo-se a ir contra os cânones arquitectónicos e sociais de como deve estar dividida uma casa de família.
Vejo ali uma secção dedicada à Economia. Prova-se, portanto, que a economia e a cultura podem conviver salutarmente. A economia está lá, ao lado da comida, na forma de livros, que acompanham os outros, muitos livros sobre assuntos que são alimentos tão importantes e vitaminados como os outros que nos enchem o estômago.
Dizia que um livro pode matar a fome. Falei do escritor e do retorno material do seu trabalho. Mas ainda não falei do leitor. Onde será que o leitor arrumaria um grande clássico da literatura? A Metamorfose, de Kafka, por exemplo. Onde poderíamos encaixá-la? Junto dos cereais, cheios de fibra, ou dos cogumelos, na esperança de que algum nos ajude a entender o conflito do protagonista? Pensando bem, junto dos cogumelos deveria estar Alice no País das Maravilhas.
Qual o sabor de cada livro? Se tivéssemos de atribuir um sabor a cada livro que lemos, qual seria? A que corresponderia um arroz de polvo? Ou um leite-creme? Podem parecer questões tolas e se calhar até são. Mas a vida não é para ser levada demasiado a sério, acho eu.
Talvez isto não seja mais do que um disparate. Eu nunca tive a cabeça muito bem arrumadinha, com as divisões todas estanques e com uma função bem definida. A minha cabeça é como o quarto da foto, mistura coisas não-misturáveis. Mas mil folhas têm outro sabor se acompanhadas de um mil-folhas, ou não?
(Fotografia de Ana Bacalhau)
[Publicado originalmente na edição de 11 de dezembro de 2016]