Gosto de policiais

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«A primeira vez que vi Terry Lennox estava ele perdido de bêbedo dentro de um Rolls Royce último modelo estacionado à entrada do terraço do Dancers Club». Assim começa O Imenso Adeus de Raymond Chandler, na tradução de Mário Henrique Leiria, número 101 da velhinha Coleção Vampiro. Algumas folhas estão soltas, a capa do surrealista Cândido Costa Pinto mostra aqueles olhos perfeitos de mulher fatal, a lombada aguenta-se com uns bocados de fita-cola. É um dos meus livros guardados com carinho, lido e relido, na estante ao lado dos outros de Chandler e de Dashiel Hammet.

Este é agora o número quatro da nova coleção, relançada pelos Livros do Brasil para recuperar clássicos da literatura policial que ao longo de décadas nos fez correr para a livraria ou pesquisar nos alfarrabistas. Com outra capa, a mesma tradução. A mesma intensidade e a mesma nonchalance da personagem Philip Marlowe e da escrita de Chandler. Terminado poucos anos antes de morrer, com o peso do álcool e da incerteza sobre a qualidade do que escrevia, este é um romance de um homem à beira do suicídio. A obra de Chandler foi decisiva para que o género policial pertencesse, como devia, à literatura. Mostra uma América cansada e desiludida, em pleno macartismo, e não se distrai em reviravoltas inacreditáveis.

Tenho pena de que as capas da nova coleção não guardem as belas imagens da original, sobretudo as de Cândido Costa Pinto e de Lima de Freitas, que acrescentavam qualidade às edições. E agradeço a preocupação com a qualidade das traduções, nem todas devidamente cuidadas nem completas.

Sou fã de policiais, das personagens banais e mornas de Simenon, do gordo Nero Wolf a cuidar orquídeas de Rex Stout, dos jogos psicológicos de Patricia Highsmith, dos nórdicos extraordinários que mais recentemente chegaram às nossas estantes. O crime tem um fascínio perverso, queremos saber mais, perceber como aconteceu, porquê, talvez porque no fundo estamos sempre a tentar descobrir até onde somos nos próprios capazes de ir, que pulsões podem virar-nos do avesso.

Hoje temos séries de televisão policiais com uma qualidade excecional – a maioria, claro, feita de facilidades e receitas simples, mas por alguma razão se mantêm anos e anos a conseguir seguidores. Do Perry Mason com um pomposo Raymond Burr ao hilariante Get Smart, e depois tudo a mudar com os Hill Street Blues, nos anos 1980.

Nessa década, segui com devoção uma ótima minissérie da BBC – O Detective Cantor. Teve apenas seis episódios e com a morte do protagonista não deixou hipótese de inventar sequelas. O guião era de Dennis Potter, grande romancista, e a personagem central era o escritor de policiais Philip E. Marlow, nome astuto, deitado numa cama de hospital. Tudo se passava entre o delírio e a realidade, numa amargura temperada com uma boa dose de ironia.

Tudo foi mudando, a televisão a ganhar qualidade. O inquietante Twin Peaks, por exemplo, a baralhar as normas do que se fazia sempre certinho. E depois Os Sopranos, a família mafiosa com padrinho no sofá da psicanalista. E ao longo das últimas décadas a arte de contar em televisão tem evoluído, quase sempre com crimes a servir de rede para contar histórias e falar de pessoas.

O Imenso Adeus termina com este parágrafo magnífico: «E nunca mais vi nenhum dos outros – exceto os polícias. A esses, ainda não se inventou um processo de lhes dizer adeus.» Pois é.

[Publicado originalmente na edição de 3 de julho de 2016]