Viagem ao centro de tudo

Notícias Magazine

Se o centro de tudo se deslocasse, perderíamos os pólos. Não saberíamos mais navegar neste oceano, regendo-nos pelas estrelas que nos indicam o Norte e o Sul, o Este e o Oeste.

Se o nosso centro se deslocasse, para onde iríamos nós, à deriva? Seria uma catástrofe, como nos filmes americanos que mostram o fim do mundo. Ficaríamos perdidos, sem saber o que fazer ou para onde ir. Entraríamos em pânico: o que outrora era, deixara de ser e isso assusta-nos.

Há que achar novas referências rapidamente para saber onde nos posicionamos no mundo. Não há pior sensação do que a de estarmos perdidos e, certamente, não haverá lugar mais assustador do que o desconhecido dentro de nós. A ideia que fazemos de nós mesmos é o centro de quem somos e onde nos podemos encontrar sempre que o mundo à nossa volta se modifica.

Somos o nosso porto seguro, de abrigo, e contamos com a constância de ser perante a inconstância do outro. Mas, e se nos tiram isso? Pior, se nos tirarmos isso, o que nos resta? Se já não sabemos onde nos podemos encontrar, se fomos ao sítio onde nos vimos pela última vez e encontrámo-lo vazio, como podemos saber onde nos podemos descobrir inteiros, outra vez?

Vaguearíamos aos bocados, como o visconde cortado ao meio, de Calvino. Cada bocado ansiosamente à procura do outro bocado para a ele se voltar a agregar, formando um todo. Ninguém é só bom e ninguém é só mau. Somos uma mistura de tudo, um bocadinho bons e um bocadinho maus.

Às vezes, os pedaços ficam confusos, acham que são o todo, soltam-se e perdem-se. E o que resta fica como uma amálgama que já não se segura a si mesma porque o seu ponto de equilíbrio se alterou com a perda. Ou então, um pedaço de nós que não sabíamos existir aparece um dia e quer à força entrar. Aí, toda a estrutura sofre por ter de se adaptar a mais um bocado, a uma peça do puzzle que não conhecia.

Mas será que a imagem final que queremos construir peça a peça é a imagem real e integral do que somos, ou estas perdas e estes ganhos súbitos servem para mostrar que a imagem que temos de nós está ainda longe de corresponder à verdade?

De qualquer das formas, como as cobras, ciclicamente temos de mudar de pele para podermos crescer. O todo que é o nosso centro tem de se expandir para continuar vivo e, para isso, precisa de se deitar a perder no mundo e voltar a encontrar-se em si. A engenharia do ser obriga a que percebamos também de reconstrução.

Como no filme americano, depois da catástrofe e dos seus efeitos devastadores, virá o luto pelo que se perdeu. Por aquilo que ficou pelo caminho. Aceitar que o mundo que era já não é mais e que, ao invés, se terá de perceber o que restou para poder construir algo de novo dos escombros.

A ideia que fazíamos de nós já não existe. Refaçamo-la. Peguemos em todas as ferramentas que temos e comecemos a partir pedra para esculpi-la. Ao mesmo tempo, soltem-se as âncoras e deixemo-nos vaguear o tempo que seja necessário até encontrar de novo terra firme. E durante a viagem, que possamos apreciar a vista e aproveitar a oportunidade para ir agarrando aquilo que de mais importante encontrarmos no caminho para o integrar em nós. No final, olhamo-nos ao espelho e apresentamo-nos a nós mesmos: “Olá, eu sou tu”.

Quantas mais peças, mais difícil o puzzle, mas mais forte o todo. O centro de tudo.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

28-6-2015