Uma questão de números

Notícias Magazine

Marta, my dear,

Pergunta sua: «O número seis, por exemplo, dependendo da posição em que cada um se encontra, pode ser visto como 6 ou 9. E com criatividade talvez sejamos capazes de ver um 7, concorda?» A primeira frase trouxe-me recordação que abriga riso e vergonha. Adolescente, visitava uma correspondente francesa. Uma dessas raparigas idealizadas enquanto esperávamos preguiçosa resposta, a volta do correio não demorava menos de dez dias, sms, mails e Skype primavam pela ausência, o imediatismo reflexo que hoje mim(n)a a comunicação também. Chegado tarde, assisti às tentativas falhadas de penetração de chave de meia-idade a fechadura do mesmo escalão etário. (Peço-lhe que valorize o meu esforço para dar uma tonalidade sexual à descrição). Moral estrita ou metal enferrujado, a verdade é que o sono reparador permanecia longínquo, algures na cama do quarto nove. Reservado; pago; e mais recente suspeito de xenofobia, o meu cantado francês do Sul já me valera sobrolhos franzidos e pergunta envenenada – «Êtes-vous pied-noir?» Não, não era, mas pertencia a um povo que arregaçava as mangas e fazia trabalhos malquistos por quem nos olhava de alto.

Alto foi o riso da senhora da receção, alertada por imprecações em língua bárbara no corredor. Sabe o que acontecera? Um prego emigrara da porta, indiferente ao desequilíbrio numérico e psicológico provocado, o número baloiçara e só não caíra por um segundo prego se manter fiel ao estabelecimento. Mas fizera o pino!, de 6 passara a 9. Logo, assino por baixo da primeira frase, precise a Marta de quem dê a cara em aula ou congresso e lá estarei, testemunha e vítima.

Quanto ao 7 e à criatividade, sou-lhe franco – no dia em que de 6 ou 9 brotar um 7 na minha cabeça, o primeiro pensamento será não pegar no volante, por medo de tropeçar na Brigada e no implacável balão. Digo-o com orgulho? Não. Muito menos com veleidades generalizadoras aos outros homens do meu sexo, como diria o velho Woody. Só confesso a pobreza do meu imaginário. E com pena. Porque se a sua «declaração de voto» contra a obsessão do coito vaginal e o ajoelhar acrítico perante o primado da ereção merece o meu aceno aprovador, outro aspeto encanta este psi – a importância do imaginário erótico na sobrevivência das relações, na sua luta contra a ferrugem do quotidiano.

Algum discurso feminista sempre defendeu que o principal órgão sexual vivia entre as orelhas. E com razão, a fantasia não é apenas a muleta esculpida por quem busca o prazer solitário, que já gozou de péssima reputação por provocar desde a epilepsia à espinhela caída. É também o guião que permite a vozes sussurradas, risos marotos e corpos entrelaçados reinventarem o desejo e, por levitante arrastamento, manterem vivo um sexo caleidoscópico.

Por vezes confundimos intimidade e epidermes suadas. É uma visão redutora. Partilhar fantasmas, que ao mesmo tempo surpreendem e divertem, escrevê-los a quatro mãos, descoser bocas e ouvidos são formas de dizer ao outro que, além de o desejarmos, confiamos nele.

Por isso estamos ali; inteiros. Ansiosos por pintar o (tal) sete no tão esquecido reino do erotismo…

[Publicado originalmente na edição de 29 de novembro de 2015]