Tudo sobre eu e os meus bichos

Notícias Magazine

O vídeo de promoção de A Vida Secreta dos Nossos Bichos, filme de animação americano, já anda por aí. O filme pretende contar o depois de fecharmos a porta e partir para o trabalho, o que acontece ao cão, à gata ou ao periquito que deixámos para trás. Por exemplo, ficamos já a saber com o documentário de apresentação que Cloé, a gata gorda, vai ao frigorífico, tira o frango assado e deixa-o nos mais simples preparos, ossos. Engalinhei, salvo seja, com o fim do frango, só comido depois de depenado, sem que eu tivesse visto o medo que teria ele ao ser apanhado pelas garras felinas, pescoço arrancado e penas esvoaçantes. Ainda me resta alguma coisa da minha infância cruel que, tal como a gorda Cloé, gosta de ser bem alimentada.

Voltando atrás, há meio século, também o Piu-Piu nunca foi apanhado e estraçalhado pelo maldoso gato Silvestre. Aliás, este foi sempre um assassino falhado, se não era a inocência do passarito amarelo, era a rapidez do rato mexicano Speedy Gonzalez que acabava por humilhar o gato mau. Mas, mesmo sem cadáver, todos os episódios da série eram marcados por uma salutar malvadez. Hoje, se a série fosse reinventada com o espírito de outrora, o rato guardaria a mesma função, mexicano a fugir da estupidez, e o Silvestre, com a pior das falhas de dicção que tem, deita perdigotos, seria ele a usar, desta vez, a poupa loura do Piu-Piu. Comprovar-se-ia, assim, que se respeitava, hoje, a ferocidade de sempre dos desenhos animados: reparem que desenhei o tolo Silvestre igualzinho ao personagem palmípede que é o lamentável Donald Trump.

Dois tempos em que evoluiu (evoluiu?) a forma de vermos os animais dos desenhos animados. Receio que A Vida Secreta dos Nossos Bichos (estreia-se nos grandes ecrãs em junho do próximo ano) vá prolongar o atual mundo cor-de-rosa em que os canitos e os gatinhos existem só para estimularem os nossos likes, enquanto lhes emprestamos direitos que eles não têm. Há dias, vi uma jovem senhora, presidente do SOS Animal, falar na televisão sobre a sua obrigação em não passar a mão pelo pelo do seu cão, caso ele não o quisesse. E comparou: apesar de também gostar muito que o pai lhe passe mão pelo cabelo, há momentos em que ela não quer isso. Visualizei a cena. Num sítio público, vejo uma senhora a recusar, uma, duas vezes, os dedos dum homem pelos seus cabelos. Parecem-me próximos, mas à terceira recusa e insistência – bastava serem veementes, não precisava de serem violentos – julgo que eu iria perguntar ao casal se estava tudo bem. Ora, eu sei que nunca faria isso entre uma dona que insistisse em acariciar o seu cão, apesar das reticências deste. O que me leva à pergunta: estaria eu a falhar na defesa do direito de alguém? Estaria a ser cúmplice duma abusadora?

No essencial admiro, claro, a função da presidente do SOS Animal. Bastou-me, para entender quanto a dedicação dela é importante, ouvi-la denunciar o comerciante algarvio que expõe à fome os seus velhos cavalos para que cidadãos decentes, apiedados, lhe comprem os animais… Obrigado, minha jovem senhora, pelo seu tão necessário trabalho, num país onde ainda se passam coisas dessas. Mas, por outro lado, não vou pelo espírito da pergunta que se pôs, no mesmo programa televisivo onde a encontrei: «Os animais têm alma?» Na matéria, ainda estou no Concílio de Mâcon, em 576, em que se terá discutido a alma nas mulheres, assunto para o qual tenho muitas dúvidas. Não tanto pelas mulheres, mas pela alma.

Estou a falar de quê? De como certas boas causas são desvirtuadas pelo demasiado. Quase que dou graças a Artémis, a deusa grega protetora dos animais, por termos um deputado moderado do PAN. Há dias, em entrevista, André Silva disse que não levará Nilo, o seu cão, para São Bento: «Vou arranjar-lhe uma companhia, para ele não estar tanto tempo sozinho.» Um conservador, ainda bem. Silva podia ser dos que não querendo ofender o cão, punham o Nilo a procurar namorada no Facebook ou nos bares.

[Publicado originalmente na edição de 1 de novembro de 2015]