Marta, my dear,
Sabe que costumo pôr as suas cartas a marinar? Os condimentos vão buscá-los ao inconsciente, gosto de acreditar que o vinagre não é um deles. Mais cedo ou mais tarde, uma frase, um innuendo, uma constatação, invade a boca de cena e arrasta o texto, obediente como véu de noiva ao longo da igreja. Desta vez foram quatro palavras: petiscar, controlo e intimidade desgastada (as duas últimas vivendo em união de facto). Talvez o ano novo traga a cura para a minha indecisão crónica, por enquanto não avisto terra. Logo…, qual escolher? Na nossa profissão, ambos vemos e ouvimos a cada passo – e suspiro! – pessoas que tomam uma decisão como outra qualquer – não decidem nada. Lendária preguiça mental, já confessada e irmã gémea da física, levou-me a optar por esse alívio passageiro. Resultado, mais do que previsível para quem não partiu todos os espelhos? – vi-me confrontado com um «pequeno» problema, como desencantar guião que as abrigasse a todas?
Intimidade desgastada é uma expressão melancólica, cheira a desperdício de trabalho árduo, «ter o outro debaixo da nossa pele», como reza a canção, é tão difícil! Sobretudo quando percebemos, surpreendidos, que essa proximidade não decorre automaticamente do namoro das epidermes, por mais agradável que seja. Ela implica a nudez psíquica, que só uma confiança absoluta permite. Mas atenção, sem prejuízo de jardins proibidos – isto cheira a telenovela… –, nunca fui defensor de imaginários escancarados ao outro, por mais amado que seja.
Tímido passo rumo a terceira palavra – às vezes a intimidade desgastada traz a nostalgia do controlo. A mulher de que me falou exercia-o durante o ato erótico e assim o tornava mais pobre. Digamos que perdia a oportunidade de petiscar – eis a quarta, caramba! – outras formas de prazer, incluindo o de nos entregarmos à fantasia de alguém, seguros de que os cenários criados jamais nos cercearão a liberdade. Outros buscam o controlo num registo detetivesco, que se espraia de telemóveis a mails, passando por amigos nas empresas telefónicas ou profissionais que entregam fotografias e itinerários, recebidos com mãos trémulas. Uma vez posta em marcha, é uma caranguejola – palavra da moda na política… – imparável. A angústia acaba por infetar até a ausência de provas, já ouvi quem estranhasse o vazio na caixa de mensagens, «Porque a limpou? Cheira a esturro…».
E a armadilha. Pois é frequente este rio desaguar em oceano de recriminações mútuas. Um protesta contra o walk on the wild side do Lou Reed; outro contra a invasão da sua privacidade. E ao lamento pelo estilhaçar da imagem de quem amamos junta-se constatação murmurada – «nunca pensei fazer tal coisa». Com um sabor ao tal vinagre na boca, descobrimos também estar de luto por uma imagem de nós.
Love hurts, escreveram os Everly Brothers, embora prefira a versão de Roy Orbison. E por isso julgar é arrogante – o que faríamos por medo de ver a ferrugem corroer a nossa intimidade? Não sei. O psi, esse, escuta e pensa em paralelo. Tentando que as pessoas retomem o controlo das suas vidas e arrisquem de novo petiscar o amor.
[Publicado originalmente na edição de 27 de dezembro de 2015]