Quem zela pelos interesses dos doentes?

O conceito é desconhecido por cá e ainda intraduzível. Chama-se patient advocacy e trata questões como os cuidados centrados no doente, a intervenção do paciente nas decisões relativas à sua saúde e a sua proteção em relação ao erro em saúde. O Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa contra o Cancro, presidido por Carlos Freire de Oliveira, vai trazê-lo à baila numa conferência que vai ser a primeira pedrada no charco e que se realiza em novembro, em Coimbra.

CARLOS FREIRE DE OLIVEIRA é médico ginecologista e oncologista, foi professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e presidente da Liga Portuguesa contra o Cancro (LPCC), assim como de várias sociedades científicas – nacionais e internacionais – ao longo das últimas décadas. Atualmente é presidente do Núcleo Regional Centro da LPCC.

Patient advocacy é uma expressão ainda pouco usada por cá, de tal forma que ainda não tem equivalente em português…
_ Sim, e não é fácil encontrar uma tradução, sobretudo para a palavra advocacy. Podemos falar em apoio, proteção ou defesa dos pacientes. Mas o conceito original abarca todos estes significados e vai além deles. Teremos de tentar encontrar uma palavra que possa exprimir o mesmo, até lá mantemos a expressão anglo-saxónica.

O termo é antigo e, apesar de ter uma aplicação mais geral, nasceu precisamente na área da oncologia. Porque é que só agora se começa a falar nele?
_Sim, surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1950, contudo só nos últimos 15 anos é que começou a ser mais falado. Por lá, há grandes instituições que contratam patient advocates, há pós-graduações em patient advocacy. Na Europa, fala-se disto apenas há meia dúzia de anos e o conceito não inclui esta profissionalização. Mas o facto de ser cada vez mais falado na área oncológica está relacionado com o aumento da incidência do cancro. A nível mundial, para 2014, previram-se 14 milhões de novos casos de cancro por ano, e estima-se para 2035 que esse número passe para 24 milhões. É um aumento de cerca de 70 por cento.

O aumento leva à necessidade de abordar o paciente e o tratamento de forma diferente?
_Uma coisa foi levando a outra. O aumento do cancro levou à medicina personalizada que tem em atenção os comportamentos biológicos do cancro – adapta-se o tratamento às caraterísticas específicas do tumor de cada doente. E isso, por sua vez, leva a uma diversidade de oferta. Mas essa diversidade obriga a uma maior intervenção do doente na própria decisão, que é outro aspeto do patient advocacy. Abarca os cuidados centrados no doente, o envolvimento do doente na decisão e ainda a criação de sistemas de segurança que protejam o doente contra o erro em saúde.

O que são em concreto cuidados centrados no doente?
_São os cuidados que não são centrados na doença e abarcam o doente num contexto global e inserido na sociedade. Passam por entender o seu contexto social, a integração na família, os problemas socioeconómicos que possa ter. É olhar o doente e não apenas a doença.

E isso já é feito?
_Há muito caminho pela frente. A nível dos cuidados primários de saúde e das equipas de enfermagem já começa a ser uma realidade. Mais do que nas instituições hospitalares em que nós, médicos, continuamos a preocupar-nos mais com a doença do que com o doente.

Os pacientes estão preparados para um maior envolvimento no processo de decisão?
_A maioria não. Quando proponho a uma paciente duas formas diferentes de tratamento de cancro da mama – que terão o mesmo resultado final, mas que têm vantagens e inconvenientes diferentes – a doente responde quase sempre: O doutor sabe melhor do que eu porque é médico.»

Os pacientes desresponsabilizam-se porque acreditam piamente no médico…
_Pois, este princípio hipocrático não desapareceu. É evidente que os princípios de Hipócrates devem ser mantidos, mas esse aspeto paternalista da figura do médico como aquele que sabe tudo, que tem todas as soluções e resolve todos os problemas, não corresponde à realidade. Efetivamente, tem de haver uma intervenção ativa do doente e, na área do cancro, isso é imprescindível.

Que conselho daria aos doentes para começarem a ter uma atitude mais proativa?
_Uma coisa muito simples, de que a maioria dos médicos não gosta porque lhes toma tempo: que o doente leve uma lista escrita com as questões a colocar ao clínico. O paciente, em relação ao médico, sente-se numa situação de desvantagem, e acaba por se limitar a responder às questões que lhe são colocadas esquecendo-se das suas próprias dúvidas e preocupações.

Mas o «Dr. Google» não tem levado a que, sobretudo os mais jovens, sejam mais inquisitivos e estejam mais informados por causa das pesquisas que fazem?
_Os médicos têm algum horror ao «Dr. Google». E por duas razões: primeiro porque muitas vezes são colocadas questões corretas às quais o médico não sabe responder, o que o deixa atrapalhado; depois porque outras tantas vezes são colocadas questões disparatadas e sem fundamento científico que são fáceis de rebater, mas que influenciam os doentes.

Mas se aparecem questões a que o médico não sabe responder é sinal de que o paciente faz o seu trabalho e está bem informado…
_É indiscutível que sim. Sobretudo os jovens chegam à consulta muito mais informados, têm muito mais capacidade de decisão e de entendimento do que lhe estamos a propor. Um paciente informado consegue abarcar a explicação mais facilmente e o diálogo é mais fácil e mais produtivo.

Falava há pouco do facto de nos Estados Unidos se ter optado pela profissionalização na área do patient advocacy. Como é que imagina a aplicação deste conceito em Portugal?
_Em primeiro lugar é preciso divulgá-lo. A maioria das pessoas e mesmo dos profissionais de saúde nunca ouviu falar nele. Depois é preciso que os envolvidos se juntem para começarem a pensar nisso. A conferência em Coimbra, em novembro, vai juntar várias entidades exatamente para fazer essa reflexão. É preciso trocar ideias entre organizações de doentes, faculdades de Medicina, hospitais, legisladores, reguladores, ativistas no âmbito da saúde. E não passa só pelo envolvimento das entidades ligadas à saúde, mas também à política. Este tema também é político.

Porquê?
_Porque, por exemplo, não é possível um médico ver um doente com cancro de 15 em 15 ou de 20 em 20 minutos, simultaneamente preencher fichas num computador, prescrever medicamentos, observar o doente e além disso – e sobretudo – conversar com ele. E o doente necessita deste diálogo.

Os médicos falam cada vez menos com os doentes?
_ Se se obriga a ver um doente de cancro de 20 em 20 minutos é evidente que o médico não tempo para conversar e abordar outras temáticas importantes relacionadas com o doente. Não quer dizer que seja o médico a resolver tudo, mas tem de saber encaminhar. Os juristas também têm de estar muito envolvidos no pacient advocacy, para dar apoio na área dos empréstimos, das questões relacionadas com o emprego e com os despedimentos. Zelar por uma boa legislação na área laboral também é muito importante.

Outra das áreas do patient advocacy é evitar o erro em saúde. Como é que isto se pode fazer?
_O melhor e mais cuidadoso dos profissionais de saúde pode cometer um erro, mas há mecanismos que permitem evitá-lo. Nos blocos operatórios, por exemplo, já existem ferramentas para evitar erros, como a introdução de checklists com cuidados a ter e procedimentos a seguir, como a contagem de material cirúrgico, por exemplo.

É médico há décadas, quando teve conhecimento deste conceito de patient advocacy?
_Quando deixei de estar só na área médica e integrei a Liga Portuguesa contra o Cancro, em 2010. Nunca aprendi nada sobre isto na faculdade. Praticamente até me reformar tratei doenças, não doentes, embora tenha tido sempre uma grande capacidade de diálogo com os pacientes. Com as atividades de apoio aos doentes da Liga e através da discussão com membros que não são médicos, passei a encarar os doentes de uma perspetiva diferente: pensando mais nos seus interesses, nas suas dificuldades.


CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
A conferência Cancer Patient Advocacy que se realiza nos dia s 12 e 13 de novembro, em Coimbra, junta um painel de especialistas de referência a nível nacional e internacional para debater os principais conceitos, objetivos e formas de atuação de patient advocacy em Portugal. Mais informações aqui.