Quatro corpos imóveis na paisagem

Notícias Magazine

A cidade é inimiga do voo dos pássaros. Ergue paredes e janelas com vidros traiçoeiros onde, às vezes, as aves colidem com estrondo e morrem.

O voo de um simples pardal é, se virmos bem, um acontecimento belo e sofisticado, resultado de milhões de anos de evolução da espécie (a palavra vôo, escrita como no Brasil antes do acordo ortográfico de 1990, parece também mais adaptada à circunstância que descreve: o ^ evoca o movimento das asas de um pássaro em pleno ato de voar). Mas a deslocação aérea de uma ave constitui uma atividade tão natural como o eclodir de uma flor ou a sucessão dos dias e das noites.

Pela mesma ordem de razões, há poucas coisas mais contrárias à natureza do que a imobilidade absoluta daquilo que devia voar e estar vivo: um pássaro morto no passeio; duas crianças e a mãe delas esmagadas no chão diante da esplanada de um bar.

Embora menos frequente do que o fim acidental de um pássaro, a mais brutal destas duas imagens repetiu-se há dias na cidade catalã de Girona. Às 19h30 de uma banal quarta-feira, uma mulher de 42 anos subiu com as duas filhas, de 11 anos e de 10 meses, ao escritório onde trabalhava (a empresa Martí Franch Arquitectura del Paisaje funciona num décimo terceiro andar da Calle Joaquim Vayreda). Doze minutos depois, os corpos das crianças caíram diante da esplanada no Bar Kiu. A mãe aterrou logo a seguir, a poucos metros de distância.

Quando li a notícia, na edição online do jornal El País, a polícia afastara já a possibilidade de uma queda acidental. A hipótese mais consistente apontava para um cenário de horror: a mãe, que terá sofrido um episódio depressivo, abriu a janela do escritório, atirou as menores e, depois, lançou-se também no vazio diante daquele décimo terceiro andar, deixando ainda órfão um rapaz de 7 anos que estava em casa dos avós.

A morte do pássaro que ilustra esta crónica e a tragédia de Girona têm em comum a existência de uma janela num edifício de uma cidade – a janela que não se abriu para deixar passar o voo do pássaro e aquela que devia ter permanecido fechada para não ceder passagem à desgraça. Mas o problema não está nas janelas.

Talvez seja inevitável que, em certas circunstâncias, as cidades sejam inimigas do voo dos pássaros. A civilização que criou os aglomerados urbanos não foi inventada pelas aves nem a pensar nelas. Mas alguma coisa há de estar muito errada para que as cidades, construídas pelos seres humanos e para eles, se transformem numa doença para as pessoas que nelas habitam.

[Publicado originalmente na edição de 27 de dezembro de 2015]