Quando é que Bond volta a ser Bond?

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James Bond ou a prova de que é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma? Esperemos que sim. Porque é preciso que alguma coisa fique na mesma para percebermos o que muda. E tudo muda, como muda. Precisamos que o 007 fique como sempre foi, o nosso herói de pacotilha, sempre pronto para salvar o mundo que gira em torno dele. O das mulheres lindas, galante, sempre a tentar engatá-las – e a conseguir. Um herói que nos dê segurança nas instituições, aquilo a que nos agarramos quando tudo arde. Um agente secreto que apanha um enxerto de porrada e se limita a esticar as bandas do casaco e soprar nos ombros e está tudo bem. Assim está. Tudo bem.

Ponto assente: não gostamos dos anti-heróis. Gostamos dos heróis do género maniqueísta, dos que nos ajudam a distinguir o bem do mal – oh, como fazer a destrinça no mundo complexo em que vivemos, em que um dia somos chamados de psicopatas porque nos incomodam os barulhos dos outros a comer e no outro somos geniais pelas mesmas razões? James Bond que nos salvam de vilões tão exagerados que todos os que temos de enfrentar no dia-a dia nos parecem cordeirinhos.

O que Sam Mendes e Daniel Craig fizeram ao agente secreto mais famoso do mundo pode ser um caminho sem retorno. Já em Spectre se desenhou um 007 com problemas psicológicos e morais. E agora, dizem, Mendes fez um James Bond mais… normal. Humano, dizem as estrelas do filme. Ora, abóbora! Desta vez, conta-se, que ainda poucos viram a fita na tela do princípio ao fim, James Bond não tem só licença para matar, tem agora permissão para apaixonar-se.

Mas quem é que quer um 007 de coração pingando por aí? Ah, dizem também que, afinal, a paixão por uma loura fria, a gélida atriz francesa Léa Seydoux, a psicóloga Madeleine Swann no filme, deixa o agente mais autoconfiante do que nunca… Ora, só quem não conhece os efeitos ténues do amor pode esperar que isso aconteça de forma duradoura. «Dizem que estás acabado», atira-lhe a agente Mrs Moneypenny. «Achas?», responde-lhe ele. E ela retorque que ele está agora a começar. Da outra vez em que James Bond se apaixonou, no filme Ao Serviço de Sua Majestade, o 007 feito pelo odiado George Lazenby – e único – teve licença para se retirar para a sua vida privada enquanto se apaixonava – em Lisboa! – e se casou mesmo com a Contessa Teresa di Vicenzo, personagem interpretada por Diana Rigg. O resultado foi bom. Manteve a ordem natural das coisas: a mulher foi morta e Bond regressou em força, desta vez com Roger Moore, o mais canastrão e divertido de sempre.

Agora temos um Bond que está menos misógino, diz Daniel Craig. Com uma relação diferente com as mulheres. Com mulheres diferentes. «Trata-se de tentar criar mulheres que estejam ao mesmo nível de Bond, que tenham a autoridade, a sabedoria, a história de vida, a aura de mistério que ele tem», diz Sam Mendes. Para isso aumentou-se a faixa etária, com Monica Bellucci, a primeira Bond lady, aos 51 anos. Que, segundo Mendes, não anda «por ali em biquíni». Tudo para correr mal, portanto. Mas, afinal, rezam as críticas britânicas que o momento Belucci dura apenas uns minutos, nos quais Craig dá um valente amasso à viúva de um vilão Belucci, ali mesmo, contra uma parede, depois do funeral do marido. Alguém teve o discernimento de manter a ordem natural das coisas. Bond voltou a ser Bond, a Bond lady rapidamente se transformou em Bond girl. E nós salvámo-nos de ter de enfrentar mais um mito de pés de barro. Ui, haveria coisa pior do que um James Bond politicamente correto?

[Publicado originalmente na edição de 1 de novembro de 2015]