Desde 2000, as séries televisivas transformaram-se em obras de arte em que os protagonistas são tipos francamente maus. É, segundo a crítica, a nova idade dourada da TV. No próximo sábado estreia a terceira temporada de Hannibal, que leva a crueldade ao extremo. Oportunidade para perceber o que nos faz gostar de anti-heróis. E o que isso diz de nós.
No episódio de abertura da terceira temporada de Hannibal, há uma cena tão repulsiva quanto fascinante. O psiquiatra está fugido à polícia norte-americana e viaja pela Europa. Leva consigo Abel Gideon – o criminoso que tinha sido o principal suspeito dos crimes que Hannibal Lecter cometera. Os dois homens sentam-se para jantar e a Gideon só resta o braço direito para agarrar a comida. O que ambos degustam é o braço esquerdo do homem, assado no forno a baixa temperatura e aromatizado com raspas de trufa branca. O tipo que foi desmembrado intelectualiza o momento – e constata que nenhum animal come carne da sua própria espécie. Lecter responde-lhe: «Mas isso pressupõe a ideia de que somos seres iguais.»
É difícil encontrar malvadez mais requintada do que a desta personagem. Hannibal Lecter foi um sucesso na literatura, no cinema (O Silêncio dos Inocentes, com um incrível Anthony Hopkins) e agora é-o na televisão. A série, que trilha um caminho muito lateral (e prévio) ao que já conhecíamos do serial killer canibal, é um sucesso entre público e crítica. Tem ganho prémios que se farta, é filmado com realizadores de primeira linha, e há longas-metragens com orçamentos muito mais baixos do que um episódio de Hannibal. Nas gravações do 13.º capítulo, que decorreram o mês passado em Toronto, no Canadá, havia um plano que mostrava um homem a pegar numa mulher ao colo e carregá-la por um corredor. Nenhuma palavra, a iluminação controlada em estúdio e uma rotação ínfima da câmara. Era relativamente fácil acertar à primeira. Mas o que vimos foi a repetição da filmagem por mais de duas dezenas de vezes. Uma atenção ao detalhe muito parecida ao cinema. Arte.
Hannibal – cuja terceira temporada estreia este sábado no canal AXN – serve de exemplo perfeito para aquilo que está a acontecer à televisão desde a viragem do milénio. A revista Atlantic sintetizou assim o fenómeno: «Há uma onda de dramas que duram uma hora e desafiam todas as regras da televisão tradicional. Por introduzirem personagens malévolas, e por subirem a qualidade – de produção, escrita e efeitos visuais – a um nível cinematográfico.» Brett Martin, jornalista da New Yorker e autor do livro Difficult Men (precisamente sobre os novos protagonistas das séries televisivas, homens que praticam o inaceitável mas com quem o público se identifica), diz que esta é a terceira idade dourada da televisão. A primeira aconteceu nos anos cinquenta, com a standardização das séries. A segunda nos oitentas, com o aparecimento de novelas dramáticas. «Desde 2000 há uma nova era que desafia as expectativas que as audiências têm de um protagonista. São homens cujo comportamento pode ser, no mínimo, definido como ambíguo. O público não se limita a assistir ao que eles fazem, também torce por eles. Mesmo quando cometem o inaceitável.»
A tendência é incontornável e as séries que têm alcançado grande sucesso nos últimos anos são espelho disso. Veja-se Dexter, centrado num analista forense que esquarteja outros criminosos, ou Erva, sobre uma mãe solteira que vende cannabis para ganhar a vida. Nurse Jackie é um fenómeno de audiências e a protagonista é uma enfermeira das urgências viciada em analgésicos e capaz de fazer qualquer coisa para obtê-los. Depois há Californication, onde o protagonista é adito em sexo, álcool e drogas, Mad Men, focado num publicitário mentiroso, egoísta e mulherengo, ou Homeland, com atenções viradas para um suposto herói de guerra que afinal é cúmplice da Al-Qaeda. Mesmo os preferidos dos Emmys têm de entrar para esta lista. A principal personagem de Breaking Bad, Walter White, é um professor de química que descobre ter cancro e começa a fabricar metanfetaminas para ganhar dinheiro. House of Cards conta a caminhada de um político sem escrúpulos, Frank Underwood, até à Casa Branca. A lista é interminável – Empire, Shameless, Boardwalk Empire, por exemplo. Enfim, são maus rapazes, são más raparigas e toda a gente torce por eles, por menos provável que isso seja.
«Começou tudo com Tony Soprano», diz Tiago R. Santos, argumentista de séries como Conta-me como Foi, Filhos do Rock ou Liberdade XXI. É de facto Os Sopranos a série a marcar a viragem. «É bem mais interessante escrever sobre o lado negro da natureza humana do que andar a entregar episódios sobre quem anda a salvar o mundo, um episódio de cada vez.» Nos anos oitenta era assim, com McGyver, O Justiceiro ou o A-Team. Já para não falar de Um Anjo na Terra. «Do ponto de vista do argumentista, a tendência atual permite explorar a complexidade do comportamento humano. Do ponto de vista do espectador, permite perceber que há pessoas que representam todos os nossos defeitos. De uma forma ou de outra, é libertador.»
Bryan Fuller, criador e escritor de Hannibal, dizia o mesmo em Toronto, perante um painel de jornalistas de todo o mundo. Segundo ele, a identificação com um anti-herói funciona porque permite aos espectadores relativizarem as suas próprias falhas. «Eu chego ao fim de cada dia cheio de arrependimentos. Não devia ter feito isto, não devia ter dito aquilo, devia ter feito isto melhor. O simples facto de estarmos vivos é delirante e por isso precisamos de nos saber perdoar. Se me identifico com um anti-herói, permito-me perdoar os meus erros. E penso: “Bem, pelo menos não ando a comer pessoas.” Então não sou um tipo assim tão mau.»
Desculparmo-nos não é, provavelmente, o único fator a atrair-nos para esta ideia de maldade. Rui Abrunhosa Gonçalves, professor de Psicologia na Universidade do Minho e especialista em comportamentos transgressivos, fala de um fascínio humano por tudo o que é desviante e proibido. O sucesso desta linha narrativa também se apoia no facto de «sabermos que dessa atração não resulta para nós nenhum problema a curto, médio ou longo prazo. O processo de humanização das personagens nasce e morre a cada episódio, não é suficiente para desenvolver identificação.» Ou seja, durante uma hora podemos acreditar no mal, porque o mal é fascinante, e por sabermos que é uma crueldade sem consequências. Bryan Fuller também tocou nesse ponto. «Vivemos uma era de indignação. Dizes qualquer coisa que não deves e toda a gente te questiona nas redes sociais: “Como te atreves? Tu não podes fazer isso.” Mas a verdade é que podes, porque é humano.» Fazermos coisas boas, fazermos coisas más e olharmos para estes maus rapazes permite-nos desviar «desta correria em que toda a gente está ansiosa por se sentir pessoalmente ofendida com alguma coisa que fizeste».
Há quem defenda, no entanto, que a televisão pode estar a fazer um jogo perigoso. «O modo como a TV encena estes temas, como âncoras de conquista de audiência, tende a degenerar em empolamento dos traços negativos e sobredosagem do tempo. Isso distorce, enviesa», acredita José Jorge Barreiros, sociólogo da comunicação. «Não podemos esquecer que o mimetismo existe e que o apelo da TV é forte e pode potenciá-lo.»
Os riscos não são provavelmente altos, até porque na imprensa norte-americana começa agora a falar-se do esgotamento desta fórmula. O final da série Mad Men pôs Robert Rorke, crítico de televisão do New York Post, a escrever: «Vamos parar com a nossa obsessão pelo anti-herói. A nossa procissão atrás de figuras encantadoramente diabólicas, genialmente loucas ou perversamente diminuídas está a ficar velha.» O facto é que o fenómeno do momento chama-se Game of Thrones e, ali, os bons são bons, os maus são maus e ninguém gosta deles. Significará isso o fim do anti-herói na televisão? «Maldade, violência e outros traços negativos existem nas sociedades e não faz sentido erradicá-los dos media», relativiza José Jorge Barreiros. Se há perigo, ele está na sobredosagem.
Bryan Fuller diz que o anti-herói não desaparecerá nunca mais do espetro televisivo. «É um novo instrumento que os criativos passarão a ter à sua disposição na caixa de ferramentas, como já tiveram muitos outros.» Tiago R. Santos também acha que a caixa de Pandora foi aberta e agora é impossível fechá-la. «Tentar criar uma personagem que é um herói sem qualquer tipo de hesitação é pura ingenuidade. Somos agora demasiado cínicos para acreditar na bondade humana, nesses tipos que fazem sempre a coisa correta.» Mads Mikelsen, o ator dinamarquês que dá corpo a Hannibal, talvez tenha resumido tudo, numa conversa no cenário da série, entre piadas sobre futebol: «O que isto nos veio mostrar é que as personagens só vão ser interessantes se forem boas e más. Não haverá bons protagonistas se não tiverem Deus e o Demónio dentro delas.»