Ela está de volta ao grande ecrã. E isso é bom para o cinema português, para nós, espetadores, e para a própria Beatriz Batarda, atriz sempre capaz dos maiores milagres. Falámos com ela para saber como tinha sido voltar à África de Margarida Cardoso em Yvone Kane, que estreia no final do mês. E encontrámo-la a apreciar os prazeres de uma nova maternidade.
Beatriz tem o tempo contado. Entre as aulas de interpretação que dá na Escola Profissional de Teatro de Cascais e a filha mais nova, com três meses, não lhe sobra muito. Mas, numa tarde gelada de inverno, Luísa, a bebé – «é ainda uma coisa muito pequenina» – ajuda a colocar um raio de luz no olhar da atriz que, a partir de dia 28, podemos ver em Yvone Kane, de Margarida Cardoso.
O filme é uma viagem a África com mágoas do pós-colonialismo, com uma Beatriz em dor e tragédia. Depois de A Costa dos Murmúrios, um novo mergulho em Moçambique – mas que agora já não tem nome, que pode ser um outro país africano mascarado de uma memória colonial portuguesa. Um país inventado a que a personagem de Beatriz volta depois da morte da filha. E quando se regressa trazem-se marcas trágicas. Há um reencontro com a mãe, interpretada por Irene Ravache, popular atriz das telenovelas, mas sobretudo do maior teatro brasileiro.
Quando nos encontrámos com ela, no início da semana que passou, e ainda antes de ligar o gravador, falámos de Julianne Moore, que certamente vai ganhar esta edição dos Óscares e de como ela dizia que, por vezes, já escolheu projetos por serem em Nova Iorque, onde vive. A atriz norte-americana sente a necessidade de estar com a família. E consigo, Beatriz, já lhe aconteceu o mesmo? «Gosto de filmar perto de casa e de poder voltar à família. A outra vantagem de estar perto é a de poder levar o meu carro. Nem sempre há um espaço só para os atores e eu não gosto de ficar refém da sala de maquilhagem/catering nos plateaux. É frequente procurar o silêncio entre cenas no meu carro. Não o faço por falta de vontade de confraternizar, é que o ator deve conhecer as suas fragilidades e defender-se delas. Eu gosto dos detalhes na representação e se me distraio, a coisa deslaça.»
Em Yvone Kane sente-se um olhar feminino de cinema. Beatriz concorda mas acha que também nada impede um realizador homem de ter um olhar feminino. «Filmei com algumas mulheres: Jeanne Waltz, Cláudia Varejão (na curta Luz da Manhã), Teresa Villaverde (em Cisne) e a Margarida Cardoso. E embora tenham esse olhar dito feminino ele revela-se de formas diferentes. A Margarida tem, para mim, o olhar mais violento de todas. Cada uma criou uma linguagem única.»
Beatriz está orgulhosa do filme. Gosta do resultado final. Quando fala de cinema português, não tem grandes dúvidas: «Olha para a nossa história, toda feita de pérolas! Porque serão os filmes portugueses tão amados lá fora? É um cinema rico e variado com identidade própria que traz olhares singulares sobre a nossa realidade. É um cinema que revela e nos questiona, e isso é o que se quer do cinema apoiado pelo Estado, aquele cinema feito para as pessoas e que não é refém das exigências comerciais. E são vários os exemplos da nova geração: Miguel Gomes, Marco Martins, Salavisa… E é sempre bom relembrar que estes filmes são feitos com poucos meios, com fundos vindos das taxas sobre a publicidade nos canais televisivos, e não das nossas contribuições fiscais, porque o cinema gera emprego e movimento na economia interna. Tenho orgulho do cinema português e gostaria de vê-lo mais acarinhado pelos portugueses.»
A propósito de orgulho, como lida com os constantes elogios e prémios? Como este que venceu em dezembro, o de melhor interpretação no festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira – precisamente com Yvone Kane. «Fico contente quando sou premiada, quem poderia duvidar dessa alegria? Mas o que me move é outra coisa.» É essa vontade de procurar, de se ultrapassar. Uma vontade que passa pela necessidade de se apagar para ficar mais perto das personagens. «Fazer à Batarda» é precisamente escapar a si próprio, esse é o seu método. Por isso, em Yvone Kane, quando compôs aquela mulher encurralada na pior das dores – a morte de uma filha criança – construiu para si uma história com a menina fictícia. «Nunca seria capaz de jogar com os meus próprios medos, não trabalho assim. Procurávamos para a Rita uma interpretação assente no indizível, feita de camadas subtis, sem tcha-nan nem cenaças. Talvez por isso tenha ficado surpreendida quando surgiu o prémio em Santa Maria da Feira.» Quando venceu recentemente o prémio da Academia, o Sophia, de Melhor Atriz Secundária num filme com muito má imprensa, Comboio Noturno para Lisboa, de Bille August, garante que ficou ainda mais surpreendida. «Era uma participação discreta. Queria ver o realizador de As Melhores Intenções a trabalhar, queria aprender.»
Além de Luísa, filha do ator Bruno Nogueira, Beatriz tem mais duas filhas, do casamento com o músico Bernardo Sassetti, falecido há três anos. A maternidade obviamente muda a maneira de uma atriz trabalhar. «A vida muda. Tal como a morte, o nascimento é uma experiência transformadora. Não sou a mesma atriz nem a mesma pessoa que fez o Peixe Lua, de José Álvaro Morais. Estou mais velha, mais cheia, de perdas e de alegrias, e consequentemente a minha relação com a profissão também se vem transformando. Creio que não há atores com um perfil igual. Mas penso que todos partilhamos uma espécie de inquietação. Quando estou a um instante de entrar no palco procuro definir um interlocutor presente no público, direcionar o momento da fantasia a essa pessoa, como um ato de dádiva sem retorno. No cinema também procuro fazer o mesmo mas aí o meu interlocutor vive na câmara.»
A maternidade aos 40 foi uma surpresa. Já não estava à espera. E é esse o futuro imediato, porque depois dos deveres maternais tem projetos. Muitos. Um filme dirigido por Marco Martins e de novo com Nuno Lopes – um reencontro depois de Alice e de Menina, de Cristina Pinheiro, uma luso-francesa que no verão roda esta história de uma filha de emigrantes franceses em França. Beatriz e o inevitável Nuno Lopes. «O nosso filme é o A Gaiola Dourada em triste», diz a brincar. Está entusiasmada, está renascida. Não quer revelar já o quê, mas tem duas encenações para a Arena Ensemble, a companhia teatral que fundou em 2007 com o realizador e encenador Marco Martins. São trabalhos para 2016 e 2017. E o companheiro, Bruno Nogueira, vai voltar a dirigi-lo? A pergunta sai meio tímida. Beatriz diz que o Bruno faz parte do Ensemble desde 2011. «Tive a sorte de o dirigir já por três vezes e contracenei num espetáculo encenado pelo Marco. Espero que possa participar do projeto que estou a preparar para 2016.» Beatriz não gosta muito de falar da vida pessoal. Não gosta de ser figura pública. «É sobretudo difícil quando vemos os nossos filhos expostos ao olhar impessoal da multidão. Aceito a minha exposição como uma obrigação profissional, mas só dou entrevistas quando estou a promover um trabalho novo.»
Beatriz Batarda começou a fazer cinema aos 12 anos, em Tempos Difíceis, de João Botelho. Meio por acidente, meio por convivência artística. Aos 20 anos filmava com grandes cineastas e fazia teatro na Cornucópia. «Na altura pareceu tudo fácil, senti-me um bocado a maior.» Na verdade, nunca quis ser atriz quando era criança. E sentiu que tinha de procurar mais coisas, tinha de se pôr à prova. Por isso foi para Londres estudar no Guildhal School of Music and Drama. Foi fundamental, essa vida em Inglaterra. Fundamental e com consequências imediatas: convites para teatro, agente que lhe deu papel numa série britânica ao lado de Damian Lewis (conhecido por Homeland), The Forsyte Saga e protagonista em It’s All Gone Pete Tong, longa-metragem que causou algum frisson no Reino Unido em 2004. «Se entrar nas conjeturas, nos ‘ses’, tudo poderia ter sido diferente. Não tem interesse alimentar esse tipo de pensamento. Em Inglaterra reencontrei o Bernardo Sassetti, amigo de há muitos anos com quem casei pouco tempo depois. Vivemos pouco tempo em Londres, quisemos logo regressar e ter a nossa família cá. Quisemos voltar, trabalhar em Portugal, criar por aqui. Na verdade, talvez por não ter propriamente escolhido ser atriz, não tinha aquela drive [determinação] que traz a fome de uma ‘carreira internacional’. Às vezes não é o destino, são escolhas. Escolhas pessoais.” Não se arrepende.
Será que a sua guinada como encenadora é um reflexo de uma vontade de ir para além do trabalho de atriz? Para e não responde logo. Depois diz-nos que ainda é uma espécie de extensão. «Comecei a encenar porque queria sobretudo trabalhar com textos e atores de quem gosto e admiro; e como não poderia representar e encenar ao mesmo tempo, optei por dirigir. Mas encenar não se resume a direção dos atores… Estou a aprender. Uma coisa é certa, realizar para cinema é que nunca irá acontecer.”
E o que lhe interessa tanto no ato de ensinar? «Há alguns anos fui convidada para ensinar na ESAD (Escola Superior de Artes e Design), nas Caldas da Rainha, agora dou aulas na EPTC – Cascais e na escola de atores ACT, da Patrícia Vasconcelos e Elsa Valentim. Nos últimos três anos tenho estado mais dedicada ao ensino por razões pessoais. Mas não sei se terei sempre a mesma disponibilidade para lecionar.» E será que há uma intuição natural de professora? Beatriz não quer ou não sabe responder, embora confesse ser gratificante poder puxar por jovens: “O que não quero é que eles pensem que representar é fazer imitações. Isso não…”
Podíamos estar uma tarde toda a falar de atores e da aventura que foi filmar Yvone Kane em Moçambique, mas nesta altura da sua nova vida, Beatriz tem o tempo todo pensado. A Luísa está à espera. O papel de mãe exige dedicação total.