O garoto que afagava cromados

Notícias Magazine

Numa noite de setembro de 1989, um amigo levou-me a ver a China. Atravessámos uma improvável Rua Visconde de Paço de Arcos, chegámos a um cais, Porto Interior, Macau. Éramos ambos luandenses, conhecíamos as noites assim, quentes e húmidas. Ele calou-se, deixou-me na minha estreia: aquela leve colina, escura, depois do braço estreito de rio, sampanas e juncos fundeados, era a China. Calados. Então, começámos a ouvir um motor de barco. Uma lancha arrastava uma traineira e dirigiu-se ao nosso cais. Alumiaram-se holofotes, o que nos fez dar conta de que um pelotão de gurkhas, alinhado, esperava que os colegas da lancha atracassem a traineira.

O barco arrastado era uma colmeia humana, gente sentada na amurada, de pé no convés, sentada e de pé sobre a casa do leme que, lá dentro, estava apinhada. Às ordens dum polícia da lancha, homens e mulheres saltaram para o cais, com bebés nos braços ou dando a mão a garotos. Alinharam-se, eram mais de cem, frente aos gurkhas, dez metros separados. «São vietnamitas», disse-me o meu amigo. Os boat-people já se faziam raros, há meses que Macau não recebia nenhum. Naquela multidão havia só um homem calçado, com sandálias. Até os sacos de tecido ou de ráfia eram raros.

Indiferente aos intrusos que eu e o meu amigo éramos, o cais transformou-se num tabuleiro de xadrez, tão lento e tão definido como um tabuleiro de xadrez. Frente a frente, dois grupos de pedras opostas. Os haves e os have nots, os que já tinha chegado e os que chegavam, os profissionais com salário e os que, isso, só em sonho. Frente a frente. Dos da traineira, alguns já se sentavam de cócoras, eram camponeses. Foi, então, que um garoto, 5, 6 anos, saiu dos seus, atravessou a terra de ninguém, passou pelos gurkhas que o seguiram com os olhos e parou à frente dum automóvel estacionado no cais. Ele tinha pouco mais do que a altura do para-choques e os cromados brilhavam. Ele passou a mão no brilho. Olhou para trás, onde a mãe ficara. Passou de novo a mão nos cromados, sorriu e, em passos saltitantes, voltou aos seus. Tinham chegado ao mundo novo.

Na noite em que pela primeira vez a vi – eu, encantado pela geografia com que os atlas de estudante da minha mãe me tinham fascinado a infância – esqueci a China porque tive o primeiro boat-people da minha vida. A história, as pessoas, apaixonaram-me sempre mais. Que será feito do vietnamitazinho dos cromados? O escritor libanês Amin Maalouf, que é académico francês, que é cristão e é árabe, que não se martiriza com o que não sabe o que é, mas mergulha em tudo o que é, que não afasta nem nega, acrescenta, tinha algo a dizer ao garoto. Durante o quarto de século que este tem vivido algures, Maalouf tem sido dos intelectuais que mais têm pensado nessa coisa tão comum que é o homem imigrado, o homem de cais longínquo da terra natal.

Diz Amin Maalouf que a obrigação daqueles que chegam é saber dos outros que já lá estão. Da sua língua e dos seus costumes. A sua obrigação é fazer desse novo lugar a sua terra adotiva, não exigindo que ela lhe dê, mas fazer-se dela. E só então é que ele passa a uma qualidade superior, que, não, não são direitos, é uma nova obrigação. E esta consiste em dar à nova terra aquilo que ele, imigrado, trouxe da antiga. Já conhecedor e amante do seu novo país, ele pode frutificá-lo com a diferença. Afinal, a viagem de mistura e partilha que, sem o saber, tem feito a maioria dos imigrantes pelo mundo fora.

Na semana de tragédia dos boat-people no Mediterrâneo, para a qual não conheço solução, quero sonhar que o meu menino do cais do Porto Interior é hoje um pescador de camarão no golfo do México, gosta de música country e dá a saber aos vizinhos americanos que uma boa sopa tem canela de Saigão, gengibre e cardamomo. Ah, e os cromados do seu Ford Mustang…

[Publicado originalmente na edição de 26 de abril de 2015]