Alguns acham-nos insuportáveis, outros um amor de pessoa. Muitos gabam-nos a sensibilidade, outros criticam a nossa frieza. Filtros psicológicos, máscaras sociais, emoções e expetativas – é isto que explica que possamos parecer tão diferentes dependendo de quem temos à frente e da situação em que estamos.
O mundo é o nosso palco e o guião já está meio escrito. Sabemos quase sempre – e muito intuitivamente – que papel representar em cada uma das dezenas de interpretações diárias que fazemos. O que dizer a cada uma das outras personagens? Que guarda-roupa usar? Qual o ângulo que mais nos favorece dependendo do holofote que nos está apontado? Não se trata de fingimento ou falsidade, mas sim de mera adaptação. Todos usamos máscaras sociais, e é bom que usemos ou o caos estaria garantido. É através delas que assumimos atitudes diferentes, mais ou menos formais, mais ou menos espontâneas. Mudamos a forma de falar e de vestir, doseamos a honestidade e as emoções que mostramos.
O fito, esclarece a socióloga Sílvia Portugal, é estar o mais adaptado possível ao contexto. «As máscaras têm um papel fundamental na vivência do quotidiano e na circulação dos indivíduos em diferentes contextos sociais, com exigências diferenciadas em termos de apresentação, modelos relacionais e competências. Não se trata de “fingir”, mas sim de ser capaz de interpretar situações sociais e dar-lhes uma resposta adequada.»
Começamos cedo a incorporar estes papéis e, quando adultos, esforçamo-nos por os passar às crianças, especialmente a partir da altura em que começam a fazer perguntas embaraçosas em voz alta e de dedo esticado. Asseguramo-nos de que percebem o que é admissível em casa e não é na rua, o que podem dizer e o que só devem pensar, que comportamento é adequado com os amigos e o como devem comportar-se na presença de adultos. Treinamo-las nesta arte de saber estar que dominamos sem pensar.
É tudo uma questão de contexto e de personagens. «Respostas adequadas num contexto não o são noutro, e, no mesmo contexto, basta mudarem as personagens para ser preciso alterar o guião: por exemplo, um jantar em família é diferente de um jantar com convidados ou em casa de alguém. Quando nos convidam para jantar não dizemos que não gostamos da comida. É “fingir”? Não. É uma forma de respeitar a generosidade de quem nos convidou», exemplifica a investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
Nas nossas interações sociais procuramos influenciar a perceção que os outros têm de nós. E, para isso, obedecemos a uma série de rituais e rotinas que procuram cumprir com aquilo que achamos que é esperado, com aquilo que aprendemos que é correto. Mas também usamos algumas máscaras para nos sentirmos melhor connosco mesmos ou para suportar situações que nos são desagradáveis. Sílvia Portugal chama a atenção para o facto de, subjacente a estes processos, estarem também formas de poder e formas de resistência. «Há contextos de autoridade mais forte nos quais temos de respeitar regras mais rígidas – o contexto laboral, por exemplo. Se o chefe está presente, cumprimos todos os rituais e rotinas exigidos; o chefe sai, dia santo na loja. À frente do chefe dizemos sim e elogiamos, ele sai da sala e contamos uma anedota sobre ele. Falsidade? Antes uma forma de resistência – só encontrando mecanismos de escape conseguimos suportar as formas de poder e submissão que nos são impostas.»
APESAR DE TUDO ISTO AS PESSOAS NÃO MUDAM MUITO. São uma e una, apenas encarnam de uma multiplicidade de papéis, usam mais ou menos filtros, e são umas vezes mais, outras menos, tolhidas pelas emoções. E tudo isso faz que, por vezes, pareçam muito diferentes. E a verdade é que raramente conseguimos só através do nosso próprio olhar ter contacto com todas estas dimensões de uma só pessoa. Provavelmente, o trabalhador que à tarde é repreendido sem dó nem piedade pelo chefe ficaria surpreendido pela forma como, nessa manhã, antes de vestir o fato, este ficou aflito com a febre do filho mais pequeno ou como beijou afetuosamente o mulher. Se o visse assim, de barba por fazer e roupão, todo sorrisos para a criança, achá-lo-ia um estranho. E o filho e a mulher, se aparecessem no escritório à tarde e assistissem à reprimenda autoritária e de sobrolho carregado ao subordinado, talvez não reconhecessem o pai e o marido afetuoso a que estão habituados.
«Nós não somos uma pessoa diferente, estamos é condicionados pelos filtros morais e sociais que colocamos nas situações», esclarece a psicóloga Ana Durão acerca destas diferenças. «Aquilo que profissionalmente pode ser funcional ou ser mesmo uma qualidade importante no exercício da função, do ponto de vista familiar pode ser mau. Por isso, a pessoa adapta-se.» E dá o seu próprio exemplo: «A mim perguntam-me muitas vezes: “Como é que consegue não chorar nas consultas, não se emocionar com certas coisas?” Porque tenho um filtro. Há um distanciamento psicológico da pessoa. O problema dela não pode ser o meu. E se um dia perdesse essa capacidade de distanciamento, se me deixasse tomar pelas emoções, isso não favoreceria o meu trabalho. Perderia a capacidade de ajudar.»
As emoções são também uma das chaves para explicar muitas das nossas diferenças de comportamento, sobretudo no balanço entre impulsividade e autocontrolo. Por norma, os comportamentos impulsivos tendem a ser mais, à medida que aumenta a intimidade. E é por esta razão que temos tendência para explodir mais facilmente com aqueles que fazem parte do nosso círculo mais restrito. Esta «explosão», explica-a Ana Durão como uma resposta àquilo que mais mexe com os nossos sentimentos e nos desorganiza emocionalmente. «É natural que as nossas reações sejam mais intempestivas com aqueles com os quais temos maior nível de afetividade, é a altura em que estamos com menos filtros. Se acontecem no trabalho é porque já não estamos a conseguir colocar os filtros necessários ao contexto.»
Mas não só somos diferentes com pessoas diferentes como também o podemos ser com a mesma pessoa. Embora, na idade adulta, seja expetável que haja um determinado padrão de comportamento da parte de uma pessoa no contexto de uma relação, se a relação muda, os comportamentos também podem mudar. E os casais que já passaram por um divórcio sabem-no bem. Depois de uma boa relação de anos e com a melhor das impressões um do outro, quando o cenário muda, a cena seguinte pode ser feia. «Essas mudanças de comportamento podem ser compreendidas entendendo que a experiência vivida pode trazer sofrimento e angústia. Por isso, eventos angustiantes como uma separação, uma perda ou outras mudanças difíceis podem também levar a manifestações comportamentais diferentes daquilo que é habitual em nós.»
CONHECIDO POR EFEITO DE PIGMALEÃO OU EFEITO ROSENTHAL, traduz algo muito simples: as expetativas que depositamos nos outros condicionam-lhes o comportamento e o desempenho. Um dos estudos mais importantes feitos acerca desta matéria foi o do psicólogo americano Robert Rosenthal, que avaliou este fenómeno nas escolas e conclui que, logo nas primeiras impressões, os professores categorizam os alunos e essas expetativas tendem a realizar-se. As conclusões mais pertinentes foram três e explicam-se por si próprias: se o professor entende que um aluno vai ter um bom rendimento, ele tê-lo-á; se não esperar muito do aluno, ele vai desmotivar-se e esforçar-se pouco, acabando por ter um rendimento fraco; sempre que os alunos contrariam a categorização que os professores lhes atribuíram a priori, vão ser negativamente avaliados por eles.
Conclusões semelhantes tiveram os estudos do sociólogo Robert K. Merton, nos anos 1960, que criou o conceito de profecia autorrealizável, e do economista Douglas McGregor, que estudou também esta mecânica da expetativa-desempenho. Para eles ficou claro que o resultado final do desempenho de alguém pode ser alterado pelas crenças e expetativas que lhe são depositadas, dando todo um novo sentido à velha máxima que diz que «somos nós que retiramos o melhor ou o pior das pessoas». Somos mesmo, e tornamo-nos, em certa medida, profetas do futuro: ao fazermos a profecia, fazêmo-la simultaneamente acontecer.