Elogio aos que não costumam tê-lo

Notícias Magazine

O meu avô Ichtyostega merecia melhor nome. Afinal, um avô é para ser chamado com carinho, mesmo que tenha as quatro patas no chão e as duas posteriores sejam mais barbatanas do que pernas. O anarquista Proudhon disse que «toda a propriedade é um roubo» e eu admito que toda a sobrevivência assente num crime. Quando o meu avô abandonou os mares, deixou de ser peixe e na ânsia de ser o primeiro vertebrado a ir passear para terra atropelou um primo e afogou-o no lodo. Crime, dizem vocês! Talvez por ser da família, eu não vou por aí, fascinam-me sempre os que lutam por si nos momentos capitais. Ficam abaixo dos que lutam pelos outros, mas acima dos que ficam quietinhos.

Mais recentemente, o senhor Mota vivia no meu bairro, São Paulo, onde tinha prédios alugados. Ele tinha também uma fazenda de café que em março de 1961 foi assaltada e destruída. Como centenas de outros portugueses, ele fugiu para Luanda. A colheita de abril já não se fez e o senhor Mota passava o tempo a laurear de carro e a viver das rendas. Mas o meio-dia era sagrado: lá estava ele na fila da Cruz Vermelha, a estender o terno – três panelas encaixadas e seguras por hastes de alumínio com punho de madeira. Ele recebia a sopa, o arroz com carne e as talhadas de mamão, tal como os refugiados que ficaram sem nada. Dir-me-ão vocês que era feio o que ele fazia, e era. Mas lembro-me do senhor Mota, que acaba de ganhar um parágrafo numa revista, 360 milhões de anos depois de o meu avô Ichtyostega ter inventado o chega para lá que eu quero safar-me.

Chego, então, aos dias explosivos de hoje. Na semana passada falei-vos do dono do restaurante La Belle Équipe, judeu que viu a mulher muçulmana morrer com a mão dela entre as suas. E também podia falar-vos do congolês Ludovic que no mesmo restaurante cobriu, e morreu por isso, o corpo da loura Chloé. Mas num mundo de tristes coitados de Kalashnikov fácil, não me apetece mais falar de gente decente e bonita. Entre as amibas do islamismo radical e as pessoas admiráveis há um patamar intermédio, como o meu avô Ichtyostega e o senhor Mota, que merecem a nossa esperança. É esse patamar (de anfíbios, patos-bravos, fura-bolos, sobreviventes militantes…), porque não é de anjos e tem a semi-indecência de saber safar-se sempre, que nos garante o futuro.

Por exemplo, o gerente do bar de nome sincero Casa Nostra. Também de Paris daquela sexta-feira, também metralhado e também com mortos, cinco. Tudo trágico mas também um nicho de mercado, pensou o gerente, da espécie do meu avô da era paleozoica e do senhor Mota. O homem vendeu o vídeo da gravação de segurança do restaurante ao jornal inglês Daily Mail, uns segundos de raios de balas e vidros estilhaçados, clientes cinzentos feitos baratas tontas – por cinquenta mil euros. Dias depois, em Saint-Denis, na banlieue de Paris, houve o assalto policial aos jihadistas barricados num apartamento. O grosso dos jornalistas chegou de manhã, mas desde a madrugada já lá estavam os fortuitos caçadores de imagens. Na Rua Corbillon, o encontro entre profissionais e amadores foi um hino à evolução, ou involução, em todo caso a espécie a mexer-se.

«Quatro vídeos, as imagens mais duras!», proclamava um rapaz, com ar de se ter reciclado nessa madrugada da venda habitual de haxixe. A repórter da BBC regateava e lá estendia notas de 50 euros com o mesmo frenesim de John Reed a tirar notas da conversa com Lénine. Ambos os jornalistas abalados pelo mundo. Digo: os contrabandistas de imagens, porque não ficam parados, merecem o mesmo respeito do meu avô. Darwin adoraria estar em Saint-Denis.

[Publicado originalmente na edição de 29 de novembro de 2015]