
O luto faz-se há muito. Este país não é para velhos, novos, trabalhadores, doentes, estudantes, empregados, desempregados, gente que não tem poder, ligações ou contactos. Este país não é para quase ninguém.
Pôs-se assim de há uns tempos para cá, porque «não havia alternativa». Porque era melhor para todos que quase todos ficassem pior. Que quase todos teriam de ficar pior para que o «país» ficasse «melhor». E pergunto-me eu: para que se quer salvar um país que não salva os seus cidadãos? Se todo este esforço não é para salvar pessoas, quer-se salvar o quê? Um sítio com fronteiras e recursos naturais que podem ser capitalizados? Onde, por acaso ou por força das circunstâncias, vivem pessoas? Que são também recursos a serem explorados para retirar daí dividendos para os poucos que mandam nisto tudo?
Como já se percebeu, os poucos que mandam nisto tudo não sabem o que andam a fazer (apesar de tentarem disfarçar o seu inconseguimento a todo o custo) e em vez de mandarem bem, mandam mal. Estragam, escavacam, escaqueiram. Deixam os cacos para que sejamos nós a ter de os colar com o nosso suor. Até mesmo com o nosso sangue, se assim tiver de ser.
Se se morre da cura, para não se morrer da doença? Sim, morre. Danos colaterais, talvez pensem eles. Quase parece que os ouço dizer: salvem-se vidas, mas só aquelas que não custam. Só aquelas que dão lucro ou que, no mínimo, não dêem prejuízo. Quarenta mil euros por uma vida? Ainda se fosse a vida de um dos credores… Agora, a vida de um dos endividados? Os mercados iriam reagir, o rating desceria de PIGGS para sabe-se lá que outro acrónimo animal (quiçá ARSES). Um tormento, uma canseira. Quinze mil doentes a quarenta mil euros a caixa seria o equivalente a construir uns poucos quilómetros de auto-estrada, cuja existência, como se sabe, é muito importante porque permite pôr carrinhos e carrinhas a levar o dinheiro aos credores em alta velocidade e alta cilindrada.
Mas a turba anda agitada. Já grita nas audições parlamentares, que maçada. Mande-se retirar os filhos das vítimas da austeridade e essa gente que atrapalha o caminho para a glória política da nota máxima no caderninho do bom aluno. Não se percebe qual a razão para tanto alarido, mas se calhar é melhor fazer acontecer qualquer coisa para apaziguar os ânimos, que entre isto e os malditos gregos a agitar as águas, algo pode começar a correr mal no nosso plano-mestre que tanto trabalho deu a desenhar a régua e esquadro no papel vegetal.
Vegetais é o que parecem ser, desprovidos de emoção, de sentimentos, incapazes de sentir empatia pelo próximo. De repente, lembro-me de uma experiência: colocaram um amendoim dentro de um pequeno tubo que estava pregado a uma mesa. Disseram a várias crianças que teriam de o tirar sem partir o tubo de vidro. Numa mesinha atrás da mesa que tinha o amendoim cativo, estava um jarro com água e um copo. Nenhuma criança conseguiu resolver o problema. Em seguida, foi-lhes mostrado um vídeo com a solução, achada prontamente por um orangotango: verter a água do jarro no tubo para fazer subir o amendoim. E assim se percebeu que a resolução de questões difíceis pode passar pelo pensamento criativo e «fora da caixa». Ou, melhor dizendo, «fora do tubo». Até um orangotango o sabe.
Mas os nossos políticos, tal qual as crianças da experiência, não. O pior é que o amendoim somos nós. No fundo do tubo de ensaio, enterrados, à espera. Enlutados. Lutemos, pois, para evitar o nojo.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 15 de fevereiro de 2015]