Carlos Gil tem um atelier/loja na Avenida da Liberdade. Uma frase assim dita não levanta surpresa. É natural que um estilista português tenha escolhido ter o seu atelier na avenida mais chique da capital portuguesa. Mas tudo muda se se disser que a Avenida da Liberdade em questão fica na cidade do Fundão. É, claro, a avenida central da cidade beirã. Mas essa importância é sempre relativa quando estamos a falar de um lugar a 300 quilómetros das capitais da moda portuguesa, Lisboa e Porto. É certo, o Fundão faz parte da cintura industrial dos lanifícios, da confeção e da tradição dos tecidos para exportação. Mas nada disso o torna o lugar ideal para acolher um estilista como Carlos Gil, que conseguiu, com o trabalho de 17 anos, árduo e a pouco e pouco, chegar aos palcos do mundo – ainda agora esteve na Semana da Moda de Milão a apresentar a coleção primavera-verão 2016.
Pois, mas foi precisamente esse o lugar que Carlos Gil escolheu. E a escolha que conseguiu manter até hoje – com força e determinação. E isso explica-se por duas razões. Pessoais: o conforto e a sensação de sentir-se em casa que lhe dá paz para criar. E, também, porque o Fundão fica a meio caminho entre Lisboa, o Porto e a internacionalização – perto das autoestradas que levam a nossa moda daqui para fora. Ora, deixando-se ficar nesse lugar de conforto, acabou por colocar também o Fundão no mapa da moda.
Não é costume esta crónica debruçar-se sobre entrevistados da revista. Este é um exercício de certa forma injusto para quem nos dá o seu tempo e as suas memórias – porque aqui falamos de quem de nós não pode falar. Abro uma exceção para falar de Carlos Gil. Gosto de personagens controversas como ele, que apareceu na vida pública por vestir Maria Cavaco Silva e provocou uma das polémicas do verão depois de o próprio Presidente o ter condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique. Gosto de pessoas que não são unânimes, porque isso normalmente quer dizer que têm algo diferente para dizer. E gosto de perceber o que está por detrás disto tudo.
A carreira de Carlos Gil é um pouco diferente dos estilistas nacionais. Começou nas escolas de moda e recusou um estágio com Giorgio Armani para ganhar a sua independência numa fábrica de confeção onde ganhou o traquejo e o tal «golpe de cintura» da moda industrial, em que 49 dos seus croquis desenhados eram rejeitados, em função de um que era aceite pelas marcas de pronto-a-vestir internacionais. Casado com a namorada do tempo do liceu, Carla, a outra face da sua carreira, ambos foram a alma de um projeto que decidiram fazer – que ela teve a ideia de fazer – e acabou por vingar no interior do país que Portugal era há 30 anos e chegou à primeira liga da moda.
E esse sucesso foi feito de uma grande dose de profissionalismo que inclui, claro, estabelecer as relações certas para ir andando em frente. Além da óbvia qualidade do que se faz – que sem essa não há boca-a-boca que lhes valha. Carlos Gil foi construindo a sua carreira na moda como um costureiro. Modelou, cortou, coseu, expôs. Primeiro na sua própria casa, com a sua máquina de costura. Depois no atelier onde angariou as suas clientes mais fiéis. E agora, com a marca com que quer conquistar o mundo. É um exemplo cheio daquilo que às vezes em vazio se chama empreendedorismo. E que devia ser louvado e aplaudido.
Foi por tudo isso que escolhemos esta entrevista exclusiva que Carlos Gil deu à Notícias Magazine como capa da edição de grande formato, mais uma vez dedicada à moda. Mais uma vez, também, a moda interessa-nos pelo seu lado civilizacional e antropológico, com tudo aquilo que tem de humano. Às vezes até demasiado humano.
[Publicado originalmente na edição de 18 de outubro de 2015]