
Aos 29 anos, Vasco Daniel decidiu mudar radicalmente de vida. Licenciado em Engenharia Informática, trocou a multinacional onde trabalhava pelo taoísmo e pelas as montanhas da China. Agora dá aulas e workshops.
Em 2009, Vasco Daniel largou tudo – o emprego numa multinacional, o salário confortável, a casa, o carro, a vida na capital portuguesa, as expetativas de um ocidental cosmopolita –, deixando perplexos e apreensivos pais, irmão, namorada e amigos. Era maio, vendeu os últimos bens, queimou a gravata e partiu para as montanhas da China, a caminho do templo taoísta dos Cinco Imortais, em Wudang. Esperavam-no doze horas diárias de treino físico intenso (seis nos dias de treino teórico), permanentes dores musculares, austeridade violenta e isolamento severo, muito desconforto, muito frio e muita humidade, uma vida em nada semelhante à visão romântica com que partira. Um caminho «do mundano ao extraordinário» – palavras suas –, à procura da «harmonia», do «princípio», da «fonte». Aos 29 anos.
A viagem já não fora fácil. Aterrara em Hong Kong. Seguiram-se duas horas de barco até Macau; cinco de autocarro sob chuva torrencial e dez num comboio lotado, um par de dias depois. Já noutro comboio, a viagem prosseguiu no dia seguinte: onze horas sentado em cima da mala até à cidade, onde dois discípulos do templo e um autocarro à pinha o conduziram à vila. Trinta minutos mais tarde, num taxi-moto, chegou à aldeia e à caminhada final: duas horas a pé, montanha acima, por entre os trilhos, até ao templo.«Cheguei feliz» – resume – para ficar meio ano. «Foi visceral e soberbo.»
O que levou Vasco a mudar de vida de maneira tão radical? «Na multinacional [de consultoria] consumia-me em algo que não me fazia vibrar, numa empresa que mascarava com marketing o fim único de obtenção de mais e mais dinheiro, mais e mais poder. Compreendi que ganhar dinheiro ou ter mais não podiam ser as únicas razões para empenharmos metade do tempo que estamos acordados em vida.»
Revisitou então o sonho adolescente. «Aos 15 anos, depois de ler uma série de livros do budismo, decidi que um dia iria a um templo, a oriente, para me encontrar». Catorze anos depois, cumpriu-se.
Vasco Daniel da Silva Baião nasceu a 18 de junho de 1980, em Lisboa, cresceu em Sintra e apresenta-se de forma peculiar. «O meu fruto preferido é a nêspera, embora seja raro encontrar das boas. Andei de dromedário antes de andar de cavalo, voei de helicóptero antes de entrar num avião. Caminhei sobre brasas porque alguém me perguntou se queria experimentar.» Quando não sabe se algo é possível, tenta. Se algo lhe parece impossível, experimenta. E materializa sonhos. Em criança procurava recantos, tocas, caixas onde pudesse recolher-se e «escutar o silêncio». Gostava de sentir e ouvir a respiração fechado em roupeiros, dentro de arcas ou em tendas improvisadas. «Era fascinado pelo tempo, lembro-me de ser muito pequeno, de me dizerem que alguém chegaria dentro de uma hora e de eu ficar a pensar o que seria uma hora, tendo percebido cedo que o tempo é inconstante.»
Aos 10 anos leu uma enciclopédia universal, e já então procurava a proporção e a simetria desenhando mandalas. Percebeu que os desafios se tornam alcançáveis aos 13, quando terminou o primeiro puzzle de mil peças, e que o Oriente o fascinava aos 15.
Neste percurso, a engenharia informática foi pois uma escolha improvável. «Licenciei-me em Engenharia Informática porque não percebia nada de física e matemática. Sabia que seria um curso muito difícil. Sempre me foi fácil aprender artes, estudar as ciências humanas. Pareceu-me então que deveria ingressar num curso que me ensinasse a matéria em que eu tinha mais dificuldades», justificação pouco comum, natural nele, que em regra funciona «ao contrário».
Já licenciado, trabalhou quatro anos como webdesigner, freelancer e consultor. Entre a adolescência e a universidade fez de tudo: foi lojista, pintor, servente, guia de viagens e cozinheiro. O regresso a Portugal, vindo do templo taoísta, não foi fácil. Na passagem por Pequim, depois de pagar um albergue para dez dias, ficou com vinte euros no bolso numa cidade desconhecida. «Quando cheguei a Lisboa, encontrava-me completamente liso e, sem ponderação ou pausa, mergulhei de cabeça em tudo o que apareceu.»
Em 2013 voltou à China e ao mosteiro onde vivera seis meses, quatro anos antes. Partiu em setembro, passou pela Coreia do Sul e pela Tailândia, entrou em 2014, à moda oriental, «entre lanternas voadoras, animadas de fogo». Até ao final desse ano passariam 16 meses, a que já fez contas: «Dormi debaixo de 90 tetos diferentes ao longo de 9 países em 4 continentes. Por mais de 50 vezes fiz viagens de 6 a 20 horas seguidas, de autocarro, comboio, avião, carro ou barco. Apanhei 22 voos, vomitando na avioneta que sobrevoa as linhas de Nazca. Pelo meio, deixei a casa onde cresci e movi todas as coisas que tinha por 4 vezes. Intercalando com as cinco viagens de trabalho e os 70 viajantes que guiei no estrangeiro.»
Pequeno excerto de um tempo em que quis ver o nascer do Sol durante 108 dias consecutivos. «Comecei pela China, passando pela Coreia do Sul, Tailândia, Índia e concluí em Portugal, mudando de perspetiva sempre que podia. Do local ou simplesmente do olhar. Fazia alguns exercícios taoístas, contemplava o espetáculo. Meditava em silêncio, tirava uma fotografia.»
A mala para três dias é igual à mala para três meses. «Prefiro levar um sabão azul e ir lavando roupa do que viajar com roupa suja que vai acumulando. Levo sempre aquele casaco que me aquece se necessário, sem ser um forno, e que consiga aguentar um pouco de chuva antes de ensopar. Procuro viajar o mais leve possível.» Assegura o essencial, só depois os artigos convenientes. E deixa um conselho: «Descansar bem e cortar nos açúcares, laticínios, farinhas refinadas e álcool nos primeiros dias de viagem.»
Em 2009, partiu procurando ter algo mais. «Voltei mais ligado ao ser. Fui com algumas ideias e romantismo e voltei com experiências e realidades. Fui mais pesado, voltei com o passo mais leve. Fui com algumas questões antigas e voltei com outras novas. Voltei mais decidido, focado e concentrado. Voltei com uma intuição mais alinhada, com uma visão bastante clara do que é verdadeiramente essencial.» Cético por natureza, tem vindo a guiar-se continuamente pela incerteza do que desconhece e servindo-se das crenças a título provisório. «Tento intuir com algum discernimento à mistura. Confiar sem fiar.»
Hoje, é terapeuta (terapia de gengibre com massagem) e formador (práticas taoístas) no Instituto Macrobiótico de Portugal, Espaço Ganesha, Act-atores, Senhora d’Azenha. Dá ações de formação em diferentes zonas do país. É guia de viagens, no projeto Zen Family (focado na realização de viagens e eventos, passeios e workshops, no estrangeiro e em Portugal). Em fevereiro esteve na Índia com mais trinta viajantes, deu aulas de práticas taoístas e palestras sobre temas de desenvolvimento pessoal.
Detesta títulos. Há uma tendência para colocar as pessoas em prateleiras. «O Pedro arquiteto», «a Rita da contabilidade», «a Maria cozinheira». Não encaixa nisso. Tempo houve, acredita, em que os pais terão tido vergonha de não ter um filho devidamente catalogado numa profissão reconhecida. Hoje, tem a certeza, orgulham-se do filho, «um vagabundo itinerante, errante e agarrado ao verbo ser». Em 2009, Vasco Daniel largou tudo. Nunca se arrependeu.