A neuroética – onde se cruzam a neurociência, a ética ou a filosofia – estuda conceitos decisivos como o livre-arbítrio, a responsabilidade e a culpa. Esta semana, em Lisboa, o tema estará em discussão numa conferência internacional. O professor da Universidade Católica é um dos palestrantes.
QUEM É ANTÓNIO JÁCOMO?
Doutor em Filosofia, professor no Centro de Investigação de Bioética (GIB), do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa e coordenador da representação do Instituto no Human Brain Project. Dedica-se à investigação das áreas da filosofia da mente, psicologia moral e neuroética. É autor de inúmeros artigos e sete livros, entre os quais O Que Conhecemos Quando Intuímos (Univ. Católica ed.).
A neuroética é um campo de estudo relativamente recente e ainda pouco falado. Só agora é que começámos a preocupar-nos com as implicações que tem o estudo do cérebro?
_Como área do saber, e associada à bioética – as questões éticas relacionadas com as ciências da vida – surgiu apenas em 2002. Não é que não houvesse, desde sempre, esta preocupaçãocom as implicações da investigação na área do cérebro, mas nunca como nestes últimos vinte ou trinta anos o conhecimento na área das neurociências se desenvolveu de forma tão exponencial. E isto obrigou os pensadores da área da bioética a especializarem-se numa área que estava muito a descoberto.
Como definiria a neuroética? Quais são as principais questões com que se ocupa hoje em dia?
_ Digo sempre que a neuroética é, simultaneamente, uma ética do cérebro e um cérebro da ética. A ética do cérebro são as questões éticas que suscita a própria investigação científica do cérebro, porque a intervenção que fazemos tem algumas especificidades, pelo facto de se tratar de um órgão essencial na deliberação e na decisão. Depois, o cérebro da ética porque aborda as implicações que a própria investigação científica sobre o cérebro está a operar naquilo que é a ética, na moral, na deliberação e na decisão.
E que implicações são essas?
_ A ética esteve sempre muito ligada à questão da liberdade, da autonomia e, à medida que vamos conhecendo cada vez melhor o funcionamento neuronal, vamos percebendo que, afinal, aquele que era o reino da liberdade tem um condicionante neurobiológico muito grande. Se tudo se pode explicar pela forma como o cérebro funciona, isto, como se percebe, tem uma implicação enorme sobre aquilo que é a condição humana.
E isso pode vir a revolucionar conceitos como o livre-arbítrio, a responsabilidade e a culpa?
_ Esse é o grande desafio que as neurociências produzem na mente das pessoas. Se sabemos como funciona o mecanismo cerebral e que consequências produz, então podemos ser levados a dizer que não há culpa, não há responsabilidade e a explicar tudo através de mecanismos neuronais. Mas, à medida que a investigação avança, percebemos que o próprio funcionamento cerebral é uma resposta adaptativa aos estímulos do exterior. A estrutura em si é igual em todos – pelo menos no cérebro não patológico – mas depois essa estrutura é muito condicionada pelo hábito, pelos estímulos exteriores, pela genética e pela cultura. E é aí que nós assentamos o conceito de pessoa humana, o conceito de culpa e de responsabilidade. Ou seja, temos consciência de que não estamos aprisionados à neurobiologia, de que na sua própria estrutura e funcionamento tudo apela a uma individualidade da realidade humana.
A neuropotenciação é uma das questões mais discutidas pela neuroética. Que questões pode levantar a hipótese de melhoramento humano?
_ É preciso distinguir vários tipos de e mais neuropotenciação. O estádio normal do nosso cérebro é, em si, de neuropotenciação. Ou seja, a evolução humana, é isso mesmo, esse melhoramento de todas as capacidades humanas das quais o cérebro é o grande arquiteto. O tipo de potenciação mais básica, os esforços, os exercícios que fazemos para estimular o cérebro, o café que tomamos, a escola, a educação, os estímulos que vamos tendo, tudo isto são formas de potenciar o cérebro. Estes dois modelos de neuropotenciação são comuns a todos os seres humanos e não têm associadas grandes questões éticas. Os desafios estão relacionados com o outro tipo de estimulação mais invasiva direcionada.
E como é que devemos olhar para esses?
_À medida que vamos conhecendo o cérebro, percebemos que podemos aumentar a sua eficácia, criar condicionantes e aumentar a atividade neuronal em determinadas áreas, até criar novos neurónios em algumas. Isso também não é nada que o nosso cérebro não faça naturalmente mas, quando temos meios técnicos para fazer isso através de um chip, de um fármaco, de uma estimulação cirúrgica, quando temos a hipótese de aumentar certas capacidades e diminuir outras, podemos também manipular aquilo que é o próprio conceito de humano. Porque, havendo essa possibilidade de controlo, sabemos que isso pode ser preocupante.
Devemos dar um passo atrás?
_Não podemos, é irreversível. Não podemos ser a figura do cão de guarda, aquele que impede a evolução científica. São realidades que serão cada vez mais visíveis e, sendo a realidade, é com base nesses factos que temos de trabalhar. Aquilo que faz a neuroética é chamar a atenção e dar alguns pareceres sobre aquelas que podem ser as consequências do descontrolo nesta potenciação.
Como é que olham para o neuromarketing?
_Esse é um dos grandes desafios. O neuromarketing é um novo nome que se dá a uma coisa antiga – a publicidade. Enquanto forma de aliciar o consumidor a consumir, foi durante muito tempo intuitiva. A novidade com o neuromarketing é que agora, além dos contributos da psicologia e da sociologia, podemos também ter ao dispor um conjunto de ferramentas relacionadas com as neurociências que podem estimular a consumir cada vez mais. As técnicas de motivação neuronal que hoje podem ser utilizadas são uma preocupação. Conhecendo as redes neuronais de estímulos visuais ou auditivos, é possível condicionar comportamentos de uma forma não consciente, e isso pode ter alguns problemas que temos de analisar.
Por exemplo?
_Um deles está relacionado como a estimulação do próprio inconsciente e faz que esta vontade de consumir não seja percebida conscientemente pelo consumidor. Quando vemos publicidade, sabemos que é publicidade. O problema existe quando usamos certas técnicas das neurociências. Por exemplo, usamos entre outras imagens uma microimagem que, sem nos apercebemos, vai ativar certas áreas do nosso cérebro e levar-nos a consumir. E estas técnicas são cada vez mais utilizadas por muitas empresas. Temos de estar atentos.
E isso é ético?
_ Temos de sair do discurso do ser ético ou não ser ético para tornar todos estes desafios éticos. Não podemos parar este desenvolvimento, é uma realidade. Temos é de encontrar estratégias de o tornar ético, de o tornar humano. Temos de encontrar um conjunto de ferramentas para que esta utilização mais inconsciente e subversiva dos recursos esteja envolta de uma carga e fundamento éticos.
Como é que isso se faz? Legisla-se?
_Claro. A neuroética e a própria bioética estão relacionadas com questões de uma natureza mais filosófica. Mas, cada vez mais, há a consciência de que o caráter pragmático e mais aplicativo implica uma boa relação com o biodireito, por exemplo. O direito tem de ser a face visível de um conjunto de recomendações que se vão fazendo e construindo na área da bioética. Caso contrário, não passa do campo da reflexão filosófica.
Tentar identificar comportamentos desviantes através do mapeamento do cérebro e do brainfingerprinting [impressão digital cerebral, uma técnica controversa, usada nos Estados Unidos como prova forense para determinar a culpa ou inocência através da análise de ondas cerebrais específicas] faz sentido?
_ Esta tendência pertence à história da neurofisiologia desde que ela existe. Começou no século xix, com a frenologia do cérebro, de Franz Gall, o apóstolo dessa tendência de mapear as áreas do cérebro, de forma a dizer se uma pessoa tem uma tendência assassina. Hoje é muito criticada. É verdade que, hoje em dia, existe um conhecimento das áreas neuronais relacionadas com certos comportamentos, sobretudo desviantes. Mas também sabemos que o funcionamento do cérebro é muito complexo e não se trata de analisar apenas áreas isoladas, porque elas estão sempre em relação com o todo.
Não há cérebros bons e cérebros maus…
_ Não. Porque, por um lado, não temos só cérebros, temos pessoas, e são as pessoas, no seu todo, que podem ter atitudes boas e atitudes más. Depois, sabemos também que não há pessoas intrinsecamente más ou intrinsecamente boas. Por fim, sabemos ainda que o cérebro não funciona fechado sobre si mesmo e a bondade ou maldade estão relacionadas com um conjunto de hábitos. Em filosofia, chamam-se as opções fundamentais da pessoa e são determinadas, não só mas também, pelo hábito. O nosso cérebro é preguiçoso, cria trilhos automatizados que ajudam a diminuir a necessidade de gasto de energia. Mas é preciso desmistificar a ideia de um cérebro que nos aprisiona a esse determinismo.
Para esse mito terá contribuído muito a ideia que se criou do cérebro como a última fronteira. Tudo o que nos falta saber sobre nós próprios mora lá?
_ Acho que a última fronteira é o homem no seu todo. Até 2003, o grande projeto era o genoma humano, que prometia que a sua descodificação nos levaria à descoberta da essência do ser humano…
As expetativas eram demasiado altas e, de certa forma, revelou-se um engano…
_ Chegámos à conclusão de que a linha do horizonte não era ali. Agora estamos a procurá-la no cérebro, esse grande desconhecido. E há também quem acredite que essa tal partícula de deus, esse último reduto da individualidade, se encontra lá. Mas daqui a uns anos vamos chegar à conclusão de que, afinal, há mais vida para além do cérebro. Há mais homem para além deste órgão fantástico.
A ICONE, International Conference on Neuroethics, promovida pelo Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto, decorre nos dias 9 e 10 de abril, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Junta especialistas como João Lobo Antunes, Alexandre Castro Caldas, Rui Vaz, Zachary Mainen, Jean-Pierre Changeux e Elkhonon Goldberg e propõe um debate entre neurocientistas com o objetivo de encontrar convergências éticas sobre os valores e princípios que permitam uma cooperação futura para combater a rutura da identidade pessoal. Informações e inscrições em www.bioetica.porto.ucp.pt/icone.