
Tanka Sapkota é dono e chef do restaurante italiano Come Prima, em Lisboa. Lutador de fundo com invulgar veia criativa e força capaz de mover o mundo, oferece todos os dias o melhor que sabe, e sabe muito. Nasceu no Nepal mas é português de coração.
Movimenta-se como um bailarino por entre as fiadas irregulares de mesas, cadeiras e frapés que pontuam aquele que é um dos melhores restaurantes italianos de Lisboa. De vez em quando desaparece para dentro da cozinha ou vai fazer uma qualquer operação no forno de lenha que marca logo quem entra no seu restaurante. Depois sai que nem um foguete, escada cima, degraus dois a dois, para atender a alguém que pediu uma boa grappa para terminar a refeição em beleza. Seja onde for, Tanka Sapkota aparece de repente, com um sorriso impossível de desmontar, os olhos de uma criança que recebe o brinquedo com que sonhava. A casa é a Come Prima, que vagamente quer dizer «como dantes». Menos vagas são as vozes de Marino Marini, Domenico Modugno ou Mario Lanza que mesmo sem soar no sistema de som nos namoram insistentes até ao fim da refeição. Além da agora óbvia Come Prima, canções como Quando Quando Quando, Guarda che Luna, e Volare, compõem um imenso repertório do final dos anos 1950 que espantosamente nos chegou intacto, mesmo no tempo em que o país não dava propriamente as boas-vindas ao estrangeiro. Canções eternas que gritam Itália, paixão, toalhas aos quadrados e que fazem de qualquer massa aglio e olio parecer iguaria dos deuses.
Sapkota é cuidadoso neste aspeto, não impõe aos seus clientes habituais o suplício de ouvir sempre as mesmas músicas quando escolhem a sua casa para comer. Nos dias especiais é o contrário e celebra-se bem a vida neste recanto lisboeta da Pampulha, perto das Janelas Verdes. Foi especial o passado dia 5 de junho de 2014. Tão especial que se ouvia Come Prima cantado e tocado ao vivo através de todo o restaurante. Sapkota estava em festa, com a atribuição do diploma de La Verace Pizza Napolitana, certificando as pizas como autênticas e verdadeiras, feitas ao estilo napolitano. Massa, ingredientes e assadura, tudo a preceito, como mandam as regras. A sua mulher Rita oficia diariamente no Come Prima ao lado do marido e naquele dia estavam também a filha Anjali (8 anos) e o filho Adarsha Pratik (6 anos) a viver a festa e a vitória. Cerca de 18 anos depois do seu primeiro emprego em Portugal, Tanka – Giovanni, nome italiano que a certa altura da vida adotou – tem um palmarés notável e um percurso de que pode estar orgulhoso. Especial entre especiais.
A 13 MIL QUILÓMETROS DO BERÇO
Tanka Sapkota nasceu em Damek, no Nepal, no dia 15 de janeiro de 1974. A mãe, Kalawati, 67 anos, e o pai, Jaguputi, 86, ainda vivos, tiveram quatro filhos. Tanka é o segundo mais novo, oito anos mais velho do que o benjamim, Yogesh, também radicado em Portugal e dono da Casa Nepalesa, restaurante étnico de sucesso e qualidade assinaláveis. A infância de Tanka foi feliz, numa paz que considera total. O nosso homem é hindu, mas tem grande admiração pela figura e talante de Siddartha, o príncipe-buda, também ele nascido no Nepal, em Lumbini, cerca de seis séculos antes de Cristo. «No Nepal vivemos lado a lado, hindus e budistas, em total tolerância», explica. É verdade que sempre que se pergunta a alguém onde nasceu Buda, a maioria responde China, outros Índia, mas quase ninguém Nepal, terra de prodígios, onde o próprio cristianismo pode ter ido buscar muitos dos seus fundamentos.
Certo é que não foi em fuga que Tanka decidiu partir para a Alemanha. Havia qualquer coisa dentro que o desinstalava, desde 1992 pelo menos, altura em que abandonou os estudos de Direito, que o seu coração o levava à moção repetida de sair donde estava. Em Estugarda foi ter com um italiano amigo do seu irmão. Rapazinho de 18 anos apenas, queria trabalhar e, perante o ultimato do irmão mais velho, decidiu abandonar a universidade e tentar a sorte na Europa, junto de um homem que, de certa forma, foi como um pai. Estudou alemão e teve o primeiro contacto com a cozinha italiana, começando, como nos filmes, a lavar pratos num restaurante. Um dia pôs a mão na massa e percebeu que conseguia fazer dela qualquer coisa, com bons resultados. Em três tempos, estava feito um verdadeiro pizzaiolo.
Quis o destino e a necessidade de regularizar a sua situação que viesse até Lisboa em 1996. Chegou e gostou do que viu, parecia-lhe ser lugar onde podia ser feliz e criar raízes. Conseguiu emprego no restaurante Trattoria assim que perceberam que ele dominava o segredo das pizas e sabia fazê-las à mão. Depois seguiu-se um período de três anos em que trabalhou por conta de outrem, sem intervalos, mas sentia-se realizado; o seu esforço era reconhecido e admirado. Em 1998, teve de ir até ao Nepal para o casamento do seu irmão e Cupido fez das suas. A irmã da noiva, Sita – ou Rita – fê-lo regressar apaixonado para Portugal. Começou a sua vida de herói em Lisboa, acabando por abrir o seu primeiro restaurante em outubro de 1999, o Bella Italia. Definitivamente, Lisboa era a sua cidade e parte dela era sua, dado o grande êxito da sua primeira ventura empresarial.
INSTALAR O AMOR E O OFÍCIO
O tempo dos casamentos combinados já tinha então passado, mas Tanka «Giovanni» Sapkota foi sempre pessoa de princípios. Timidamente começou uma troca de cartas com Rita, tentando encurtar a enorme distância, quase meio mundo, a que se encontravam. Foi plenamente correspondido e a intenção de casar não se fez esperar, mas para os seus pais Rita era ainda demasiado jovem para casar. Esperaram, assentes mais e mais na troca epistolar, até que vem o sinal positivo. Casaram no Nepal em 2002, um ano depois de se mudar para o Come Prima, no local onde ainda hoje se encontra. Para se aperfeiçoar, escolheu Itália, primeiro um mês e meio no Tripini, em Orvieto, depois na grande escola Gambero Rosso, em Roma, ao longo de quase um ano. Deu-se a inflexão profissional que Giovanni sabia que tinha de acontecer, passando a dedicar-se ao receituário clássico italiano e à cozinha mais elaborada de matriz mediterrânica. 2009 é por isso o ano da autonomização definitiva do chef Sapkota, permitindo-se chamar verdadeiramente seus aos pratos que oferece no Come Prima. O que hoje se chama cozinha de autor.
No tempo da trufa branca de Alba, entre outubro e janeiro de cada ano, ano após ano recebe o produto na sua cozinha, que processa como ninguém. No passado houve alguns cozinheiros que ousaram propor menus de trufa branca, mas hoje apenas Tanka «Giovanni» Sapkota tem uma oferta consistente, com que podemos contar.
Antes da certificação – mero pró-forma a que o cozinheiro quis atender – já Sapkota tinha todo um trabalho de ensaios com farinhas, produzindo por exemplo fermento natural, para melhorar a qualidade das suas pizas. Está a desenvolver neste momento um trabalho de grande valor, com produtos tradicionais portugueses, em busca da frescura e combinações únicas que a nossa cozinha consegue oferecer. E está com a ideia fixa de plantar um olival com as nossas variedades… no Nepal. Quer produzir azeite na sua terra natal e está convicto de que vai conseguir. Alguém se atreve a duvidar?