A cachaça Carvalheira veio buscar o nome – e as barricas de carvalho onde é envelhecida – a Portugal. O produto de luxo desenvolvido por lusodescendentes quer demarcar-se do rótulo de «bebida popular». Os turistas que vão chegar para o Mundial poderão dar uma ajuda.
Frederico Pereira Pinto era mais um dos Pintos naquele navio que saiu de Lisboa rumo ao Recife, capital de Pernambuco. Estávamos no final do século XIX e, tal como muitos portugueses – mais de vinte mil por ano –, Frederico fugia da falta de trabalho nos campos e perseguia o mito de fortuna fácil no continente onde parecia ser possível concretizar todos os sonhos.
Para se distinguir do Pinto Lapa ou do Pinto Silva, Frederico passou a ser conhecido, durante a viagem, como o Pinto da Carvalheira, nome da quinta da sua família que ainda hoje existe em Alvarenga, concelho de Arouca. Foi assim, para que os Pintos não se confundissem, que nasceu a primeira geração da família Carvalheira em Pernambuco.
Quando se entra na fábrica da Carvalheira, no Recife, o cheiro a álcool é tão forte que são necessários alguns minutos para que o cérebro se habitue. Dispostas na vertical, três mil barricas de carvalho – produzidas pela família na quinta em Portugal – guardam a cachaça que descansa até estar suficientemente velha para ser engarrafada. O processo pode demorar 12 anos. «As bebidas Carvalheira são totalmente artesanais, como devem ser todas as marcas que se assumem como premium», diz Eduardo Carvalheira, bisneto de Frederico, e responsável pela empresa. Um dia chegou a casa, olhou para as garrafas de cachaça que o pai produzia manualmente e perguntou: «E se fizéssemos alguma coisa para desenvolver isso? Tu sabes fabricar, eu sei promover…» Octávio Carvalheira, neto do Pinto da Carvalheira, era um químico industrial que tinha dedicado toda a vida a desenvolver tecnologia para a fabrico de açúcar e álcool. Não pensou duas vezes antes de aceitar o desafio do filho.
A produção acabou por revelar-se o mais fácil. O grande desafio foi criar uma marca que se demarcasse da cultura populista associada à bebida. «A cachaça é uma das bebidas mais baratas do Brasil. Quando se pensa em cachaça, pensa-se na mesa de boteco e em pessoas a cair para o lado. Como se fosse um produto só apreciado por bêbedos. Nós quisemos fugir dessa imagem desde o início.» Formado em Marketing, Fernando sabia bem o que queria: um produto que transmitisse confiança e um certo conservadorismo. Depois de falar com o pai, durante dias não pensou em mais nada.
«A maioria das cachaças têm como rótulo a bunda de uma mulher na praia ou a imagem do homem sendo chifrado. Enganar o consumidor, ludibriar o governo, eram mensagens sempre associadas à bebida. Encontrei a melhor opção dentro de casa: escolhi o nome Carvalheira e a fotografia da primeira geração da minha família em Pernambuco para o rótulo das garrafas. No contrarrótulo, conto a história da quinta de Alvarenga, das origens portuguesas, o que ajuda a transmitir a credibilidade que tanto ambicionávamos.»
A primeira garrafa da Adega Carvalheira foi vendida em 1995. Hoje, a marca comercializa seis tipos de bebidas diferentes: a Grão Fino, a única envelhecida por 12 anos com 40% de teor alcoólico; a Extra Premium, em repouso durante cinco anos e a mais procurada para fazer caipirinhas; a Carvalheira Brasil, vendida pura; a Porto Recife, com 38% de teor alcoólico, mistura de cachaça com passas de fruta, canela ou raízes; a Flor de Limão, cachaça branca misturada com sumo natural de limão; e a Santa Dose, a preferida do público feminino, com baixo teor alcoólico, uma mescla de cachaça, mel e limão. Os preços variam entre 10 e 150 euros.
A Carvalheira é conhecida como uma marca premium no Brasil e começa a destacar-se no estrangeiro. Sobretudo em Portugal, onde é comercializada pela Sociedade dos Vinhos Borges. Mas «sair além-fronteiras é um grande desafio: a cachaça fora do Brasil é consumida sobretudo para fazer caipirinhas. Para fazer uma mistura com cachaça, açúcar, lima e gelo, não importa muito a qualidade porque o sabor é inibido, o que leva o consumidor a escolher sempre a opção mais barata».
O empresário salienta ainda que a procura de bebidas puras é cada vez menor. «Com a implementação da “Lei Seca” no Brasil [que impõe tolerância zero ao álcool para quem conduz], o consumo de bebida destilada pura está a cair. O mercado do futuro será o das bebidas misturadas, como a Santa Dose ou a Flor de Limão.»
E será que a Carvalheira pode competir com a cachaça de Minas Gerais, a mais famosa do Brasil? «Claro que sim! São dois produtos completamente diferentes. Em Minas eles não têm uma cultura de envelhecimento da cachaça, que é quase sempre crua [vendida imediatamente após a destilação]. Preserva-se a visão romântica da bebida. Os produtores desenvolveram muitas unidades de pequena escala e cooperativas, o que os ajudou a tornarem-se mais fortes. Apesar disso, a produtividade por hectare é muito menor do que em Pernambuco, um estado talhado, desde o tempo em que o Brasil era uma colónia portuguesa, para o cultivo da cana-de-açúcar. Se me disserem que a melhor cachaça não envelhecida do Brasil vem de Minas Gerais, aí, sim, estou de acordo.»
A Carvalheira, porém, não produz cachaça. O processo em que o caldo da cana é fermentado e depois destilado até atingir o grau pretendido (quanto mais forem as destilações, maior o teor alcoólico) é feito por fabricantes externos que Eduardo não revela: «São o segredo do negócio.» Na adega, que é também palco de festas e eventos, são desenvolvidos apenas os dois processos finais – o envelhecimento e o engarrafamento.
Atualmente, o espaço acolhe mais de 40 mil turistas por ano que querem conhecer como é feita a bebida mais típica do Brasil. O sucesso da marca faz que tenha recebido vários convites para produzir um produto «menos sofisticado» e «mais virado para as massas». Mas Eduardo rejeita a ideia. «Desde o início que sei o que quero e não me tenho dado mal. Só me associo a marcas de luxo, como a Mercedes, por exemplo, que recentemente nos contratou para fazer uma das suas festas. Preferiu servir Carvalheira a whisky ou champanhe. E eu prefiro ter um produto de luxo a um produto banal.»