A 11 de Março de 2011 o pior sismo de que há memória no Japão devastou Tohoku, transformando a região num mar de lama e destroços quando um tsunami de dez metros entrou pela costa e varreu tudo à sua passagem. Ainda há muito a fazer, mas aos poucos a vida volta a entrar nos eixos.
No instante em que encontrou de pé o esqueleto do que fora o seu café azul chamado Espoir (Esperança), Saito Mikiko só conseguiu pensar que lhe parecia muito bonito e inesperado. Passara-se um par de dias desde que avistara a cor das paredes ao longe, angustiada, aguardando com o marido numa zona de evacuação após ouvir o alerta de tsunami e ter aconselhado empregados e clientes a procurarem abrigo nas alturas. Dali viu a onda gigante engolir tudo num trago voraz, o café, a casa, outras 13 mil casas como a sua, o porto, carros, estradas e a maior parte do que antes se erguia na área costeira de Kesennuma, cidade da província de Miyagi e em tempos um dos mais importantes centros de pesca do Japão. Forçou os olhos a fixarem o inferno que a cabeça se recusava a assimilar para mais tarde poder colar os pedaços e dar-lhes um sentido. Estranhamente, descobrir que a árvore que plantara no exterior do Espoir lhe poupara o vidro das janelas, com os seus ramos pesados de peixes mortos e detritos, soou-lhe a presságio de que voltaria a ter negócio. Reabriu-o menos de um ano depois do caos, em dezembro de 2011, provisório mas com o mesmo nome afortunado.
«Primeiro foi o terramoto, depois o tsunami, depois os incêndios visíveis na noite, quando o combustível nos tanques das viaturas destruídas explodiu. Pudemos evitar o pior em termos humanos, por termos agido logo que o alarme soou, mas perdemos 35 anos de negócio e a nossa casa foi completamente varrida», recorda Saito, que depois do choque se arrancou à inércia arrastando a alma, sem acreditar que poucas horas bastaram para sentir mais horror do que em 53 anos de existência. Levou semanas a libertar a estrutura moribunda dos escombros antes de conseguir entrar, alternando os dias de limpeza intensiva com as noites passadas no abrigo onde continua a viver ao fim de um ano. O café, temporário e muito mais pequeno do que o Espoir original, pô-lo a funcionar num ponto da cidade que escapou ao tsunami, emprestado aos lojistas desalojados para se recomporem e ajudarem a reabilitar a economia local num esforço concertado. «A renda aqui é baixa, mas quero estabelecer-me noutro lado, mais tarde. O nome será o mesmo: Esperança», revela a empreendedora, otimista quando se lembra de que não tem mais nada a perder.
O desastre natural de 11 de março de 2011 transformou Kesennuma num mar de lama, destroços e medo, com a cidade localizada próximo do epicentro daquele que foi já considerado o pior sismo de que há memória no Japão e o sétimo maior da história (8,9 graus na escala de Richter às 14h46 locais, com intensidade máxima a 130 quilómetros a leste da cidade de Sendai, também em Miyiagi). Ao primeiro tremor, seguiram-se mais de cem réplicas e um violento maremoto que subjugou a região de Tohoku – a parte nordeste da maior ilha japonesa, Honshu, composta pelas províncias de Miyagi, Iwate, Fukushima (as três mais afetadas), Akita, Aomori e Yamagata. Até onde foi capaz de chegar, a fúria da água colheu vidas humanas, edifícios, infraestruturas, plantou navios no cimento, seguiu imparável o seu caminho e retorceu tudo numa massa inenarrável de detritos fumegantes que entupiram as regiões afetadas de entulho e corpos ou foram arrastados para o mar quando a onda retrocedeu, somando um total de 15 853 mortos, 6013 feridos, 3286 desaparecidos e 71 124 evacuados, segundo dados atualizados pela polícia japonesa e a Agência de Gestão de Desastres e Incêndios em fevereiro deste ano [2012].
A capital, Tóquio, viu os prédios tremerem e sofreu cortes nos transportes, comunicações e energia, apesar de distar quase quatrocentos quilómetros da região sinistrada. Em Ofunato, na província de Iwate, habitantes que sobreviveram ao sismo com braços e pernas partidos acabaram por sucumbir ao tsunami que se seguiu, sem tempo para se refugiarem em locais elevados. Em Sendai (Miyagi) e Kamaishi (Iwate), o impacte da onda gigante atirou barcos e camiões contra estruturas de ferro e arrastou tudo à sua passagem. Aos olhos do mundo, que assistiu abismado àquelas imagens, o povo japonês ganhou um respeito renovado graças à dignidade e espírito de entreajuda com que se lançou a reconstruir o país mais uma vez, depois de em 1923 o terramoto de Konto ter vitimado mais de cem mil pessoas e de, em 1945, ser bombardeado sem apelo durante a Segunda Guerra Mundial. De todas as vezes que o Japão caiu recomeçou do zero, os dentes cerrados para não gritar, a cabeça erguida. O ano que hoje se completa sobre a tragédia de 11 de março não foi exceção.
UM HINO À RESILIÊNCIA
Sakai Masayuki, 60 anos, ia ao volante pelas ruas de Kesennuma quando pressentiu o perigo a crescer atrás de si. «Olhei pelo retrovisor e vi a vaga a avançar. Tive de saltar do carro e correr o mais depressa que pude para me salvar», relata o atual responsável de uma das associações de residências provisórias no local, construída numa escola da cidade para albergar 252 pessoas desalojadas, numa média de três membros por 84 famílias. «Tinha sentido o tremor de terra, ouvi o primeiro alerta de tsunami e estava a afastar-me da costa quando a água me apanhou no caminho.» A última coisa que viu antes de subir a um edifício de três andares, ligeiro como um menino tal era o medo, foi o carro a ser arrastado na enxurrada. Sakai perdeu a lavandaria, o lar e o brilho nos olhos. Chegou a pensar que perdia também a vontade, mas as coisas acabaram por se compor nos meses seguintes: além de em maio ter encontrado um lar na residência que hoje dirige, após uma estada de dois meses noutro abrigo, tornou-se presidente da associação e orienta quem chega e quem sai, rezando sempre para que as quatro mil famílias distribuídas pelos 93 abrigos de Kesennuma encontrem a normalidade.
«Aqui, o limite máximo de ocupação é de dois anos e, nesse período de tempo, uns saem mais cedo do que outros, à medida que vão resolvendo as suas vidas», explica o dirigente, orgulhoso do complexo de habitações que custou cinco milhões e meio de ienes (perto de 51 mil euros) a pôr de pé e oferece aos moradores todas as regalias de um apartamento moderno e a cheirar a novo, equipado com ar condicionado, cozinha e dois ou três quartos. Pode dar-se o caso de terem de sair dali para outro abrigo, se porventura dois anos não forem suficientes para arranjarem casa própria. Ainda assim, o futuro só pode melhorar a partir do momento em que sobreviveram ao pesadelo. «Estamos todos juntos nisto», garante Sakai Masayuki. «Perdemos muita coisa, mas continuaremos a trabalhar com empenho para restaurar a cidade.»
Entre planos de reconstrução, medidas de segurança, divisão de responsabilidades e distribuição de fundos, num diálogo que se arrasta entre o governo e as autoridades locais, há quem sinta que os progressos não estão a ser suficientemente rápidos à luz do muito que ainda falta fazer. A verdade, no entanto, é que a vida regressa à normalidade: estradas foram reconstruídas em poucos meses; a ligação por terra entre as províncias devastadas há muito que foi restabelecida; escolas, hospitais e serviços servem as populações. Na central nuclear de Fukushima, palco de incêndios que alimentaram o temor de um desastre nuclear, os trabalhadores evitaram que a integridade do núcleo interno dos reatores fosse comprometida pela explosão, controlando uma eventual fuga radioativa. Também Kesennuma insiste no esforço conjunto de limpar as feridas: se tudo correr como esperado, terá o novo mercado de peixe reconstruído em dois anos e a marina nos dois seguintes. Comerciantes ligados à área da restauração, apoiados pelas autoridades locais, pediram emprestado um lote de terreno privado, estruturas à Organização para as Pequenas e Médias Empresas e Inovação Regional, e abriram duas dezenas de restaurantes provisórios que lhes trazem a esperança de revitalizar a cidade, transformando a tragédia em desenvolvimento sustentável no futuro.
Akihiko Sugawara, 49 anos, é um produtor de sake de quarta geração que viu o tsunami parar-lhe a um metro da porta da fábrica, a Otokoyama Honten. Quis o céu que a onda gigante lhe deixasse os equipamentos intactos, numa altura em que quase todas as pessoas na cidade choravam a perda de entes queridos e bens, e interpretou isso como um sinal de que tinha de continuar a laborar em nome de todas elas, arranjando-se sem água nem eletricidade, num hino à resiliência de Kesennuma. Nem queria acreditar quando alguns vizinhos se juntaram a ele com combustível, mãos voluntariosas e palavras de coragem. Tão-pouco pensou que as encomendas para aquele lote improvisado lhe surgissem de vários pontos do país, incentivando-o a prosseguir com a tarefa de promover a cidade. Ele, que já antes estava envolvido com a comunidade local, passou a ter uma espécie de segunda profissão: quando não está a trabalhar no licor e a fomentar o emprego na fábrica, mantém-se ocupado a servir de pilar de todos quantos o procuram.
«O sake contém tudo do clima e da cultura japoneses e, nesta situação atípica, foi também um meio privilegiado de ligar as pessoas umas às outras», constata o empresário, apostado em que o dinheiro das vendas reverta a favor do crescimento do bairro. «Somos companheiros, trabalhamos como uma equipa. Apesar da dor, ninguém deixou de se entregar às tarefas com a concentração que elas requerem. A mente estava lá a cem por cento, os sentidos alerta.» E nessa medida, diz, parte do sofrimento foi curado no processo de fazer sake, numa atitude de aceitação tipicamente japonesa.
Luís Filipe Afonso, um lisboeta de 37 anos a viver no Japão desde junho de 2008 por razões do coração – adora o país e casou com Etsuko, uma mulher natural de Ofunato (Iwate) -, prefere chamar-lhe antes uma «capacidade de preparação para o pior», natural num país propenso a desastres naturais de grande envergadura. O facto de morar no lado oposto a Tohoku, em Fukuoka (a maior e principal cidade da segunda ilha mais povoada do Japão, Kyushu), permitiu-lhe fazer uma sexta-feira normal, sem suspeitar da desgraça que mais tarde o faria sentir-se magoado e impotente. Quando chegou a casa e viu as notícias na televisão, num crescendo que se foi apoderando de si aos poucos até lhe esfrangalhar as emoções, sentiu-se como se tudo se estivesse a passar num país estrangeiro, tais eram a perplexidade, o choque e a sensação geral de impotência.
«Apesar de o núcleo familiar da Etsuko se ter fixado em Fukuoka há mais de trinta anos, temos familiares em Ofunato, Rikuzentakata, Minamisanriku e Fukushima, algumas das áreas mais afetadas pela voragem da destruição», conta o tradutor de literatura moderna japonesa, adiantando que os familiares próximos se salvaram, mas perderam outros parentes mais afastados, concentrados na área de Rikuzentakata. «Foi uma grande angústia ao longo de várias semanas. Devido à rutura das comunicações e ao caos que se seguiu, estivemos muitos dias sem saber do paradeiro de vários familiares, entre tios e primos, com especial preocupação pela avó Kocho, mãe da minha sogra e prestes a completar 100 anos.» Luís observa que a idosa senhora assistiu a todas as tormentas do século, o grande terramoto de Kanto, os anos do militarismo e da guerra (nas décadas de 1930 e 40), a reconstrução e o milagre económico, os solavancos da história. Ao fim de cinco filhos e de ter visto a sua terra natal ser destruída por diversas vezes, nunca perdeu o encanto pela vida e é, naturalmente, a figura que inspira a todos maior carinho e preocupação, ensinando-os a aceitar a realidade tal como ela é.
«Na prática, aqui em Fukuoka foi como se estivéssemos noutro país», concede o tradutor, sustentando que só com o passar dos dias se começou a sentir a escassez de alguns bens de consumo nas prateleiras dos supermercados, do sabão e papel higiénico aos legumes frescos, arroz e leite. O maior abanão, curiosamente, sente-o agora no tom do debate público nos principais canais informativos e no clima de incerteza no ar. «Existe muita apreensão e um criticismo aberto a muitas decisões governamentais atinentes à reconstrução de Tohoku e também à questão de Fukushima. Não é comum no Japão, um país onde as pessoas e as instituições públicas e privadas se pautam pela parcimónia na manifestação de opiniões críticas», faz notar. A crise nuclear atual levantou as questões da sustentabilidade energética do país, da regeneração da sua economia, dos níveis de industrialização e do futuro. Ao mesmo tempo, a reconstrução das áreas afetadas e o realojamento de múltiplas comunidades acarretam custos incomportáveis e problemas de cariz prático e logístico que o país terá de resolver. «Mais do que nunca, a sociedade japonesa de hoje sente uma grande necessidade de transformação e de reforma das suas instituições, e o 11 de março de 2011 trouxe esse sentimento em força para a praça pública», resume. É uma outra forma de se renascer das cinzas.
[Publicado originalmente na edição de 11 de Março de 2012]