É preciso perceber se a política do Estado para os livros escolares serve os cidadãos ou as editoras. Jorge Pedreira foi secretário de Estado Adjunto e da Educação no primeiro governo Sócrates e das suas mãos saíram as principais leis de regulação do setor. Diz que o futuro dos manuais é digital.
Polónia, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Reino Unido, França. Em todos estes países os manuais escolares são gratuitos. Porque é que não são em Portugal?
O Estado, por uma questão orçamental, não incorpora no seu orçamento educativo as despesas com os manuais escolares. Mas há autarquias que suportam esse custo, sobretudo no primeiro ciclo. Não há orçamento para comprar livros, mas há apoios. No final do governo anterior, eram mais de trinta por cento as famílias que recebiam ação social escolar, que eram ajudadas na compra dos manuais escolares. A nossa ideia era alargar esse apoio, mas entretanto mergulhámos nesta crise orçamental.
As editoras têm um negócio milionário…
Essa ideia do negócio milionário, neste momento, não tem grande cabimento. Os manuais são um bem de ordem prescritiva e por isso as editoras têm um mercado relativamente previsível. Mas a reutilização está a crescer, as pessoas estão cada vez mais a trocar livros à margem das editoras. E depois há a instabilidade curricular. Cada ministro que chega muda substantivamente o currículo das principais disciplinas. É impossível vender manuais que estão impressos se o currículo da disciplina se alterou. Existe um enorme custo de comercialização dos manuais escolares, porque as editoras têm de concorrer para conseguir que os seus produtos sejam escolhidos por esta ou aquela escola.
Há estados nos EUA onde os manuais são feitos em papel mais barato. Os conteúdos são os mesmos, mas os custos de produção são substancialmente mais baixos. Porque não se aplica a mesma ideia aqui?
Eu acho que um produto de menor qualidade tem consequências pedagógicas, porque degrada a relação do aluno e do professor com o manual escolar. A questão que se coloca hoje é qual o futuro do manual escolar. A digitalização é, a prazo, o substituto do manual em papel. Admito que dentro de pouco tempo tenhamos muito mais recursos educativos digitais em volta do manual escolar – e aí pode fazer sentido ter livros mais baratos. Numa situação em que o manual ainda é o recurso pedagógico fundamental, a sua degradação física não me parece uma boa solução.
Mas há manuais que custam trinta euros. Isto não lhe parece exagerado tendo em conta a pressão fiscal a que as famílias estão sujeitas – e o próprio nível salarial do país?
O que há é um desequilíbrio muito grande do sistema. Os manuais do primeiro ciclo são bastante baratos – mais até do que em Espanha, onde a escala do mercado justificaria a existência de livros mais baratos do que em Portugal. Os manuais do ensino secundário, sim, são dispendiosos. Isto deriva de uma situação histórica. Até à altura em que estive no governo os manuais do secundário não faziam parte da convenção de preços – porque o secundário não era obrigatório. Houve um controlo forte dos preços no ensino básico e não houve no secundário.
Há especulação?
É difícil haver especulação porque a concorrência é muito forte. Apesar de serem poucos os operadores fortes no mercado do livro escolar, as editoras gastam muito dinheiro em divulgação, marketing, persuasão junto das escolas e dos professores – que têm liberdade de escolha na adoção dos manuais.
A educação é uma competência do Estado. Não é incoerente o marketing e a persuasão encarecer um bem de compra obrigatória?
E qual é a solução? A questão é: as escolas não escolhem os livros pelos preços. Os preços são regulados centralmente. É muito difícil chegar ao pé das editoras quando há uma contração real do mercado – por causa deste fenómeno de reutilização e por causa da quebra da natalidade –, e dizer-lhes que têm de baixar os preços, sem nenhuma contrapartida.
Mas o Estado serve os cidadãos ou serve as editoras?
O que está a dizer-me é que deve ser o Estado a fazer os livros. Não se pode obrigar um operador privado a fazer um serviço e depois determinar-lhe um preço.
E o Estado não pode fazer os livros porquê?
Porque isso vai contra a liberdade de educação e a existência de um sistema plural. A ideia do livro único funciona em sociedades muito pobres – como os países africanos de língua portuguesa, em que as famílias não têm qualquer capacidade de comparticipar a compra do livro – ou em regimes totalitários. Em qualquer dos casos, não há liberdade para os professores e as escolas escolherem os manuais mais indicados.
Mas a responsabilidade social do Estado tem de servir, em primeiro lugar, as famílias.
Claro. Sou totalmente favorável a um reforço do apoio social às famílias e a uma regulação dos preços. Também podia pensar-se num projeto em que o Estado patrocinasse uma redução dos custos de contexto que são completamente alheios à qualidade do manual escolar. Veja, os editores fazem milhares de manuais que não vendem, nomeadamente para persuadir os professores a adotarem o seu produto. Isso faz que, muitas vezes, um livro só se torne rentável ao fim de dois ou três anos no mercado. Estas despesas de marketing têm um custo que se reflete no que as famílias pagam, mas também é verdade que, se patrocinarmos esses custos, podemos estar a criar uma cartelização do mercado. Há aqui um equilíbrio difícil entre a liberdade de escolha, de concorrência, e a proteção das famílias. Quando cheguei ao governo havia um conflito enorme entre os editores, o que beneficiou o Ministério da Educação e, portanto, as famílias. Era mais fácil fazer acordos com uma das partes e a outra seguir o caminho. Isso viu-se no trabalho da convenção dos preços que conseguimos operar. Mas já sabemos que todos os anos, por esta altura, há um coro de protestos contra a despesa dos manuais escolares. Até nos anos em que congelámos os preços havia barulho.
Não será por os preços estarem inflacionados à partida?
A despesa fundamental do manual escolar vem das estruturas técnicas que as principais editoras têm de ter em funcionamento para controlar a qualidade dos livros, e não pelos custos de produção e armazenamento, que também são altos. Não basta contratar pessoas com credenciais que atestem a qualidade pedagógica do manual, é preciso saber adequá-las aos professores e aos alunos. Ou seja, os produtores têm estruturas altamente profissionais que constituem uma despesa fixa ao longo do ano, apesar de as vendas serem sazonais. E depois há um fator que encarece imenso os preços, que é a instabilidade curricular. Se os currículos mudam, milhares de manuais vão parar ao lixo, o que é uma despesa elevadíssima.
Concorda com a ideia de um pacto de regime para os currículos escolares?
Claramente. Acho que, na área da educação, seria uma missão absolutamente patriótica conseguir um acordo entre os partidos do arco da governação e a sociedade civil em relação aos objetivos de aprendizagem. Por um lado, porque se aprende muita coisa inútil. Quem tem filhos na escola sabe que há muita dificuldade em distinguir o acessório do fundamental. Cada vez que o Ministério da Educação designa uma comissão de ilustres sábios para definir um programa, ele é sempre maior do que era antes – porque cada um dos cientistas acredita que estuda a coisa mais importante do mundo e, se puder aumentar o currículo na sua área, melhor. Aquilo que é preciso de facto, sobretudo até ao nono ano, é consolidar as questões fundamentais e esquecer os pormenores.
E porque é que não há vontade política para esse acordo?
A educação tornou-se um dos setores mais controversos da discussão governativa. Há pouca discussão técnica e muita perspetiva política. Houve uma oscilação muito grande neste setor em Portugal, nos últimos anos. Do ponto de vista da ideologia educativa, a educação em Portugal sempre esteve muito à esquerda. Neste momento, há um conservadorismo ideológico em relação à educação, que deriva da ideia de que o projeto pedagógico da esquerda falhou. Mas o que é questionável é que ela tenha sido eficazmente aplicada. A ideia de que a pedagogia construtivista e diferenciada foi alguma vez aplicada nas escolas portuguesas é uma ficção. No discurso sim, mas na prática não. E agora caiu-se no outro extremo, muito mais autoritário, sob a desculpa do falhanço de uma pedagogia que nunca chegou a ser aplicada.
Voltemos à discussão dos manuais escolares. Uma das principais medidas que aplicou quando esteve no governo foi o controlo de qualidade dos livros escolares. Isso não veio de alguma forma proteger os grandes grupos editoriais, que estavam mais bem preparados para responder às exigências do ministério?
Creio que não. Na altura tive até um conflito grande com a Porto Editora por causa destas medidas. Havia a opinião corrente de que os manuais escolares continham erros e eram de fraca qualidade. E isso podia ser uma arma do ministério contra as editoras numa negociação mais geral. Quando foi criada a lei de controlo de qualidade dos manuais houve muita resistência por parte das editoras, até perceberem que não era estratégia nenhuma. Quem certificava os livros eram as universidades e as associações científicas creditadas, não o ministério. Quando os editores perceberam isso, a resistência desapareceu.
Diz que é difícil baixar os preços dos livros e que tem de se reforçar a ação social escolar. Mas, em período de contenção orçamental, não corremos o risco de ter crianças com dificuldades de acesso aos manuais por constrangimentos financeiros?
Há uma frase que me irrita solenemente: corta-se em todo o lado, tem de se cortar também aqui. Não tenho as contas atualizadas, mas é certo que a despesa pública de Portugal com a educação já está fora dos parâmetros europeus. Admito que é preciso fazer cortes nas áreas certas, que é preciso grande rigor na gestão dos recursos que existem. Por exemplo, a gestão dos professores não foi rigorosa em vários governos socialistas ou de direita. Havia escolas que tinham mais trinta por cento de professores para o mesmo número de alunos. Mas o nível dos cortes na educação em Portugal deixa-me preocupado, porque não podemos colocar em causa o apoio aos mais débeis.
Os manuais digitais podem resolver uma parte deste constrangimento financeiro, não?
Ah, sim, eu não tenho dúvidas de que esse é o caminho. É uma questão de tempo. É preciso também vencer os receios dos professores. A digitalização já existe. A Porto Editora apostou num modelo próprio afastado dos manuais, que é a Escola Virtual, e a Leya, onde trabalho, apostou no desenvolvimento de recursos complementares ao manual. Temos de pensar não em manuais escolares, mas em projetos escolares que envolvam, entre outras coisas, o manual digital. Há projetos-piloto de digitalização integral em algumas escolas, mas ainda há muito caminho para percorrer.
JORGE PEDREIRA
Professor de História e Sociologia na Universidade Nova de Lisboa, foi secretário de Estado adjunto e da Educação entre 2005 e 2009. Em 2001 e 2002 tinha sido diretor-geral do Ensino Superior e hoje é presidente do conselho de administração da UnyLeya, uma empresa do grupo Leya vocacionada para formação à distância, assistida por computador, no espaço da língua portuguesa.