
O jornalista Ferreira Fernandes acaba de reeditar um livro marcante para compreender o país antes da Revolução. Lembro-me Que é um retrato perfeito de Portugal, numa viagem entre 1 de janeiro e 25 de Abril de 1974.
Lembro-me…
… que a 31 de março, o Estádio José Alvalade encheu-se para o jogo contra o grande rival. Dez minutos antes de o árbitro apitar, houve ovação a Marcelo Caetano. Não sabia que era a sua última apoteose. O Benfica ganhou 5-3, sendo o primeiro golo de Humberto Coelho
… que o José Maria Pedroto abandonou o Vitória de Setúbal, depois de cinco anos como treinador. Ele explicou a razão da saída: «A direção do clube quer impor um regulamento antidemocrático. Um jogador, para dar entrevistas, tem de pedir autorização.» (Trinta anos depois, as direções dos clubes não precisam de “não autorizar”, basta decretarem o black-out.)
… de a Lisnave, estaleiro naval frente a Lisboa, ter aumentado o seu pessoal entre dez e 20 por cento.
… que o ator americano Raymond Burr (célebre por fazer de advogado na série Perry Mason) vivia nos Açores, onde cultivava orquídeas para exportação.
… que [no Festival da Canção de 1974] se avariou o sistema eletrónico de pontuações. Glória de Matos teve de subir a um banquinho e escrever os pontos a giz.
… de a duquesa do Cadaval, Claudine, parisiense casada com um descendente de Nuno Álvares Pereira, ser considerada, em Nova Iorque, uma das «24 personagens mundiais mais elegantes».
… que o Teatro Maria Vitória levava à cena a revista Ver, Ouvir e… Calar!. Elenco de luxo: Salvador, Ivone, Henrique Santana. (Semanas depois, mudariam algumas rábulas e, sobretudo, o título, que passou a ser: Ver, Ouvir e… Falar!)
… que as chamadas telefónicas locais mais baratas da Europa eram as portuguesas ($70). E as mais caras eram as alemãs (2$97).
… que um pouco antes do 25 de Abril se tinha dado outra revolução. Foi em 1 de fevereiro de 1974: as donas de casa passaram a pagar os sacos de plástico. Diversas cadeias de supermercados fizeram um anúncio conjunto explicando a medida. Os portugueses ficaram mais cultos: ficaram a saber que o plástico vinha do petróleo.
… que o Diário Popular lançou o alerta: «Barbeiros: uma classe em vias de extinção?» Em Lisboa, fecharam 250 barbearias. A moda dos «guedelhudos» era apontada como uma das causas.
… que havia 26 cinemas em Lisboa. E nem um terço dos filmes que passavam eram americanos.
… que os produtos alimentares subiram, num ano, 17 por cento.
… que a Associação dos Médicos Católicos Portugueses promoveu umas jornadas sobre «Sociedade Moderna e População», onde se concluiu: «A contraceção é um crime contra a humanidade.»
… que ainda havia, em Lisboa, moços de fretes. Carregadores que ficavam nas esquinas (na Rua da Prata, na Calçada do Combro), à espera de trabalho. Vinham quase todos do concelho de Góis, tinham uma corda forte ao ombro e esperavam que os chamassem.Mudavam mobílias, pianos e faziam recados. Chamavam-se assim: «Psst! Pssst!»
… que os postos gasolineiros estavam fechados nos fins de semana.
… que o secretário de Estado do Desporto, Valadão Chagas, anunciou que, a partir de janeiro de 1975, não haveria campos pelados na Primeira Divisão (hoje, Liga Zon Sagres).
… que foram inauguradas as duas primeiras máquinas-bilheteiras da CP. Na Estação do Rossio, serviam a Linha de Sintra e tinham vindo da Holanda.
… que as revistas do Parque Mayer eram o abono de família dos jornais de Lisboa: eram os principais clientes das páginas de publicidade.
… que o Dr. Brito Rebelo, um dos nossos raros especialistas de informática, fez o balanço: em Lisboa, havia 12 centros de ensino de «programação computerial»; em Portugal, havia 300 computadores e 500 minicomputadores (subida de 80 por cento em três anos); os bancos, «por prestígio», eram os melhores clientes; por muito caros, os computadores alugavam-se (de 70 a mil contos mensais).
… que o embaixador americano ofereceu a Portugal uma bandeira portuguesa que viajou na Apolo 17 e uma pedra lunar. (Muitos anos depois, a pedra seria roubada do Planetário Gulbenkian.)
… que um turista sul-africano fez nudismo na piscina do Hotel Polana, em Lourenço Marques (hoje Maputo). Indignação em vários jornais nacionais.
… da tarde em que se encontraram, Amália e Eusébio. Os dois símbolos do fado e do futebol (da trilogia de «efes» com Fátima, que narcotizava, dizia-se, a sociedade portuguesa). Nesse dia, Eusébio, em fim de carreira, com 32 anos, ainda marcaria dois golos ao Belenenses. Antes do jogo, Amália foi dar-lhe um beijo. E tudo foi filmado para o terceiro canal da televisão francesa, para o documentário Mon Pays: Le Portugal.
… que toda a gente andava maluca com a Bolsa. Para poder garantir o ritmo frenético das atualizações, a Bolsa passou a abrir só três dias por semana. Por causa disso, a compra e a venda de títulos vieram para a rua: a do Ouro, em Lisboa, e a Sampaio Bruno, no Porto. Havia pregões assim: «É do Sotto Mayor, a quatro e trezentos!»