
Os protestos contra o Campeonato do Mundo de Futebol continuam a fazer-se sentir no Brasil. A culpa, segundo o escritor brasileiro, é da sua própria geração – a esquerda que saiu da ditadura militar e hoje ocupa o poder – que não soube transformar o país. É esse o mote do romance Habitante Irreal. Uma conversa com um ex-militante do PT sobre índios, a classe média e os protestos nas ruas.
O seu romance, Habitante Irreal, é um livro que anuncia a insatisfação com a política brasileira, a oportunidade perdida de mudar um país. O seu descontentamento é o mesmo que se tem manifestado nas ruas?
_Na verdade, eu quis espicaçar mais a minha geração do que a que está agora nas ruas. Eu quero afetar as pessoas que lutaram comigo, os idealistas do meu tempo. Quero falar a eles – e a mim – sobre como falhámos. Sobre a nossa própria arrogância de acharmos que poderíamos mudar o Brasil e de como não o fizemos.
Porque é que a sua geração, a que está agora no poder, falhou?
_Porque as nossas pretensões eram muito grandes. Saímos de uma ditadura militar e tínhamos a convicção juvenil de que iríamos criar a justiça social que o Brasil hoje pede nas ruas. O PT [Partido dos Trabalhadores], em que militei, chegou ao poder, sim. Mas o sistema financeiro está mais forte, é mais dominador, a indústria bélica continua a patrocinar conflitos e os velhos coronéis que criaram a ditadura seguem impunes. O maior problema do Brasil, hoje, é judicial. O sistema de responsabilização criminal só castiga o pobre e a sensação de injustiça é tão grande que não tem outra hipótese que não seja manifestar-se nas ruas.
Mas há grandes mudanças nos últimos anos, sobretudo depois de o PT chegar ao poder. Se há menos pobreza no Brasil isso não significa que o país é agora mais justo?
_O governo do Lula conseguiu fazer uma distribuição de rendimento inegável. Houve muita gente a sair da miséria e isso é nítido. Ao mesmo tempo, os ricos nunca foram tão bem tratados. O espaço que encolheu foi o da classe média e é ela que agora desperta. Porque a classe média estava acomodada. Não tinha de lutar para comer, nem tinha de arriscar o seu capital em negócios que podiam correr mal. A classe média tranquilizada nunca tinha sido ameaçada desde os anos setenta. Agora sente-se em risco.
Os protestos no Brasil são uma revolta de classe média?
_A classe média estava até há poucos anos habituada a esconder-se, a não dar a cara. Mesmo com a redemocratização do Brasil, as pessoas eram muito medrosas, havia um receio generalizado do regresso dos militares ao poder. Fui militante do PT, mas mesmo depois do fim da ditadura agíamos de forma clandestina. Não nos manifestávamos, não dizíamos a nossa filiação. É preciso ver que o partido tinha ligações à guerrilha e a grupos radicais. E, durante muitos anos, a polícia secreta continuou forte, tinha agentes espalhados pelas organizações. As coisas só começaram a mudar com o governo do Fernando Henrique Cardoso, e depois com o do Lula. Agora, sinto-me esperançoso com a classe média, porque ela começou a mexer-se. E isso acontece porque está a perder mais espaço do que nunca.
Mas a massa de protesto é tão forte que não a pode circunscrever a uma única classe…
_A internet veio mudar o acesso à informação. Um rapaz de 15 anos numa favela tem hoje mais informação ao seu dispor do que um quarentão de classe média, com bom nível de instrução, nos anos setenta. A «revolução brasileira», tal como os protestos na Europa, em Wall Street ou no mundo árabe têm por base a tecnologia. As pessoas passaram a contactar umas com as outras sem intermediários. As campanhas e as indignações são claras porque a população não se sente representada. O parlamento brasileiro é ocupado em grande maioria por bandidos, pessoas que deviam estar na cadeia e não em altos cargos de estado. A liderança alterou-se com as redes sociais e hoje o contacto entre a classe média, que lidera os protestos, e os representantes das classes pobres é imediato – e muito difícil de constranger pelo poder. Tenho dúvidas sobre a duração des tes fenómenos no tempo. As manifestações parecem ter um efeito de cascata, mais do que um vínculo. Ainda é cedo para ter certezas, para fazer livros sobre isto. Mas, pronto, eu fiz.
Abandonou o PT nos anos noventa, mas alguns dos seus companheiros continuaram no partido. Como é que eles reagiram a um livro que mostra tanta desilusão com a política?
_As lideranças do Sul leram e gostaram. Mesmo que tenham permanecido dentro do PT, militando, quem é inteligente e sóbrio sabe que houve um desvio de rota entre a construção ideal do discurso e a construção de alianças com quem antes era o inimigo, o exato oposto do PT. A diferença entre o que somos e o que nos tornámos (muitas vezes pior do que os nossos inimigos, que antes criticámos) é muito grande. A nossa infância e a nossa maturidade como partido são coisas diferentes.
Houve algum episódio que tenha sido a gota de água para abandonar o partido?
_Não há um momento específico que me fizesse deixar de acreditar. Foi uma estratégia de anos. A cada campanha eu percebia que se estavam a fazer alianças inimagináveis, com grandes inimigos como José Sarney ou Collor de Mello. Foi preciso fazer marketing para ganhar as pessoas, alargar o eleitorado. No processo, perdeu-se a oportunidade de fazer uma mudança mais profunda, que agora a população exige. Nós queríamos fazer a diferença. Com estas pessoas a quem o PT se juntou, é impossível.
As críticas que hoje se ouvem na rua falam da falta de investimento em saúde e educação e no dinheiro que se gastou em estádios para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. O Rio de Janeiro, onde vive há seis anos, é onde está a ser feito o maior investimento. Mas não é o maior centro de contestação. Vai sê-lo quando começar a Copa?
_Tudo leva a crer que a contestação vai ser forte. O Brasil está em recessão desde 2013 e os efeitos estão a sentir-se cada vez mais. A Dilma fez um pacto com os miseráveis e com os super-ricos, deu bolsas de saúde e rendimento às populações miseráveis, privilegiou os grandes investidores. Mas a classe média carioca está tão angustiada quanto a do resto do Brasil. Depois há que ver uma coisa: o Rio é mais caótico, é uma bagunça danada. Se um dia o Rio de Janeiro funcionar direitinho, o Brasil vai funcionar direitinho. A vaga de protestos do ano passado começou em Porto Alegre, explodiu em São Paulo e só chegou ao Rio de Janeiro dias depois, como ao resto do Brasil. Mas até em Brasília, com um governo de esquerda, Dilma foi vaiada na Taça das Confederações e teve de entrar no estádio com um forte dispositivo policial. A polícia usou balas de borracha para dispersar a população. Como se as balas de borracha não pudessem matar alguém ou cegar alguém. Não ficaria admirado se o mesmo acontecesse agora.
O seu livro fala muito dos interesses indígenas. Uma das protagonistas da história é Maína, uma índia que engravida aos quinze anos e sofre na pele todo o abandono a que o seu povo está relegado. Nesta vaga de protestos no Brasil também cabe esta questão?
_A questão indígena ainda não está resolvida no Brasil. O livro passa-se entre 1989 e 2009 e claro que as coisas estão melhores, mas o trabalho das ONG e as manifestações têm sido insuficientes para proteger o índio. Há gente muito envolvida na luta pelos direitos indígenas, mas em condições muito débeis. O Brasil tem uma taxa de criminalidade altíssima, é um país violento e o interior é particularmente violento. A posse da terra é disputada ao limite, segue um modelo em que uma vaca tem mais valor do que um ser humano.
É uma questão política?
_O Brasil é maior do que a nossa capacidade de administrá-lo e isso permite a invasão dos territórios indígenas, como permite por exemplo desflorestar em grande escala. É um problema de soberania, em que há fazendeiros que agem como senhores absolutos da terra. Quando comecei a escrever este livro, em 2006, muita gente do meio literário dizia que a questão índia não ia ter interesse. A verdade é que as coisas estão a mudar. Várias organizações citam o meu livro como um sintoma de uma consciencialização dos não índios. A literatura tem um papel interessante na criação de uma consciência.
A arte reflete inevitavelmente sobre o seu tempo. Considera o seu livro um romance político?
_O compromisso da literatura é contar uma boa história. A minha literatura é como é porque eu sou um cidadão interessado, tenho um compromisso de luta contra todo e qualquer preconceito. Defino-me como negro, porque o meu pai e o meu irmão são negros e, em minha casa, a família resolveu muito bem esta questão. Todos dizemos que somos negros, mesmo que a cor da pele não corresponda a essa ideia. A minha literatura não tem uma solução para o problema brasileiro. Mas tem um olhar contaminado, envenenado pela aspiração de um país melhor.
QUEM É PAULO SCOTT?
É um dos nomes mais fortes da nova literatura brasileira. Nascido em Porto Alegre em 1966, vive há meia dúzia de anos no Rio de Janeiro. O seu trabalho literário conta várias obras de poesia, teatro, romance e contos. Habitante Irreal (ed. Tinta da China) é o segundo romance e venceu o Prémio Machado de Assis 2012 e o Prémio Fundação da Biblioteca Nacional, no mesmo ano.