O maior de todos os clichés

Notícias Magazine

– Ainda não?

– «Ainda não», o quê?

– Ainda não acabaste o jantar? Estás aqui há tanto tempo. O que é que tens estado a fazer?

– Há tanto tempo?! Estou aqui há meia ho­ra e já arrumei a cozinha e tirei o peixe pa­ra descongelar. Vou começar a fazer agora. Não estive parado nem a olhar para ontem.

– Ai não? Tu não arrumaste a cozinha. Tu pu­seste a louça na máquina. É diferente. E já po­dias ter tratado do peixe. É para cozer, podes pôr ao lume ainda congelado. Agora ainda vai cozer, ainda vais descascar as batatas, pôr a cozer… ainda por cima as cenouras demoram mais tempo… e vamos jantar outra vez às dez.

– Não jantamos nada. Isto é um instante.

– Jantamos às 09h45, vai dar ao mesmo. É tarde. Porque é que não puseste as coisas ao lume enquanto fazias isso?

– Porque não sou capaz de trabalhar no meio da bagunça. Tinha de limpar primeiro.

– Não. Não trataste disso antes porque não sabes priorizar. Tem de estar tudo imacula­do para descascares a porra de uma batata.

– Mas vieste para a cozinha para me chatear?

– Não, vim à cozinha para te pedir para tra­tares do banho do teu filho. Eu ia agora des­pi-lo e tu tratavas do banho.

– Tem de ser agora?

– Tem, tem de ser agora. É agora que esta criança costuma tomar banho, lembras-te? Agora! Não às dez da noite, quando te dá jeito.

– Não é isso. É que temos coisas na banhei­ra. Pus lá os tapetes que tinhas pedido para passar por água.

– Mas ainda não trataste disso? Pensava que já estavam estendidos.

– Não, não tratei. Pediste-me para fazer o jantar e não con­sigo estar em dois sítios ao mesmo tempo.

– Mas os tapetes estão ali desde manhã. Eu pedi-te is­so de manhã e pedi-te para os estenderes depois de almoço. O que é que estiveste a fazer a tarde toda?

– Estive a fazer coisas.

– Coisas? Estives­te a engonhar. Andaste a fazer porcariazinhas de um la­do para o outro e os tapetes ainda lá estão, o jantar não está feito e o miúdo está a ficar com fome.

– Fui com ele ao parque. Isso demora tempo.

– Estiveste uma hora – uma hora!! – com ele no parque. E nessa hora eu fui às com­pras para mim, passei pelo supermercado para as compras para nós e ainda fui pôr gasolina no carro. No teu carro, que esta­va na reserva. Ah, e também estendi a rou­pa antes de vocês chegarem.

– Então, és mais rápida do que eu…

– Não é porque sou mais rápida. É por­que consigo definir prioridades e tratar das coisas de uma só vez. Ao contrário de ti. E no meio disto, não foste comprar fru­ta, pois não?

– Mas como é que querias que eu fosse comprar fruta? Não consigo desdobrar-me. Sou só um.

– Sim. És só um. E demoras uma tarde in­teira para ir com o teu filho ao parque, pa­ra enfiar três pratos e um tacho na máquina de lavar e para passar um pano na bancada. Isso deve ter sido tudo feito com muito esmero e aposto que não há um pin­go de gordura. Mas também não há jantar. Nem fruta. Nem banheira para o teu filho tomar banho. Parabéns.

– Já acabaste? Posso ir tratar do peixe?

– Não, podes ir tratar das batatas, porque o peixe já está ao lume. Já fiz isso enquanto falava contigo. Nem reparaste, pois não? Sabes que se pode falar e mexer os braci­nhos ao mesmo tempo, não sabes?

– Tens muita graça. E daqui a pouco vais dizer que os homens não são ca­pazes de fazer duas coisas ao mesmo tempo. És muito original.

– E até faço mais: consigo falar, me­xer os braços e pensar. São três coi­sas em simultâneo.

– Estou farto desta conversa. Vou dar banho ao miúdo. Trata tu do jantar.

– A banheira. Vai tra­tar da banheira pri­meiro!