O amor deles

Notícias Magazine

Mildred Delores era mestiça e Richard Loving era branco e essas contingências impediam quase tudo no seu amor. Havia uma lei, a Virginia’s Racial Integrity Act, Lei da Pureza Racial da Virgí­nia, de 1924, ainda vigente quando aquele amor acontecia no final da década de 1950 e naquele estado americano. Tirando o quase tu­do ficava o tudo que era o amor deles. Em 1958, ela, 18 anos, ele, 24, meteram-se no carro e foram casar-se a um pouco mais de cem qui­lómetros para norte, em Washington, capital do país que fazia fil­mes. No Colonial, cinema do meu bairro, em Luanda, passavam fil­mes de aventuras, os melhores para formar um garoto de qualquer parte do mundo. Bons contra maus, e só. Para aprender o resto eu tinha mais moderno: bastava voltar para casa, onde viviam o meu tio Afonso, branco, e a sua mulher Idalina, mestiça.

Mildred e Richard eram meus contemporâneos, digo isto para que se saiba que estou preparado para os compreender, mais até do que a O Sangue dos Bárbaros, em que John Wayne fazia de Gengis Khan e vi no Colonial. Mildred tinha saias plissadas, co­mo a minha mãe, e Richard talvez conduzisse uma carrinha Stu­debaker, como o meu pai. Eu não estava, ainda, era preparado pa­ra compreender o essencial deles, aquela coisa do amor cercado por uma impossibilidade. Mildred e Richard Loving foram tam­bém os protagonistas do Loving Case judiciário e de The Loving Story jornalístico que –­ além de dar extraordinários títulos, o Ca­so Amoroso e História de Amor – revolucionou a América quan­do, em 1967, o Supremo Tribunal acabou, por causa deles, com a lei absurda. Se me permitem, tudo minudências quando compa­rado com o amor proibido de Mildred e Richard.

Eles amavam-se e, para os outros, eles não podiam amar-se, ora porque ela era nobre e ele plebeu, ela era dos Capuletos, ele dos Montecchios, o que quiserem, mas deixo cair os acasos pa­ra me ficar pela vida daqueles dois. Os dois. Gostaria de saber o que o cerco lhes fez. Em 1958, Central Point, a cidadezinha de am­bos, tinha poucas centenas de olhos para driblar. Nas ruas nunca andaram de mãos dadas, mas iam mais agarrados, embora não se vendo, do que todos os adolescentes com que se cruzavam. Outras vezes, ele ia pegá-la num lugar ermo ou, aprendendo com o tem­po, no cruzamento mais exposto, porque assim se enganam as suspeitas. De Studebaker iam até Chesapeake Bay. Talvez a car­rinha tivesse rádio e se ouvisse a mais recente canção de Patsy Cli­ne, Three Cigarretes in a Ashtray, e ele, sentindo que ela o olhava, confirmava. Mildred olhava Richard. E Mildred dizia: «Três? Que tola, o cinzeiro só tem dois cigarros.» E eles davam-se as mãos, co­mo felizmente lhes era proibido na sua cidadezinha, o que lhes da­va o prémio de se darem as mãos como ninguém o fazia em todo o estado da Virgínia.

Passavam Williamsburg, onde o tal impedimento co­meçara – os primeiros negros daquela América desembarcaram lá, vindos da minha terra, Luanda. E se eu, com dez anitos, por um qualquer acaso aparecesse naquela cabina do Studebaker e lhes dissesse que havia mundo em que o seu amor poderia ser público, eles ficariam menos surpreendidos com a minha aparição do que com o interesse do mundo em vê-los. A carrinha seguia para o grande porto de Norfolk e, eu, armado em esperto, dir-lhes-ia que ali, exatamente meio século depois, haveria o comício de um pre­to que ia ser presidente. Eles não me ouviam, só se queriam olhar. E se calhar faziam bem. Foi olhando-se que eles fizeram, como poucos, com que eu pudesse ver, no fim do comício, um velho bur­guês preto, caminhando sozinho e martelando estas palavras: «Eu vivi isto. Eu vivi isto.»

Foram casar-se mas nada mudou quando regressaram a Central Point. Escondiam as mãos dadas, os beijos e os olhares, sempre incrédulos que houvesse quem não visse. Um dia, a polí­cia invadiu-lhes a casa e o xerife apanhou-os na cama: «Quem é es­ta mulher?» Foi Mildred que respondeu: «Sou a mulher dele.» Fo­ram condenados a um ano. Um dia ele morreu, aos 41 anos, num acidente de estrada. Nem aí ela acreditou em Patsy Cline, que aca­ba cantando, assim: «(…) sento-me sozinha/e vejo um cigarro que arde.» Mildred deve ter dito: «Que tola, são dois cigarros.»

[19-01-2014]