McNamara para além das ondas

Miguel Conde Coutinho e Raquel Teixeira

Como é a vida de Garret McNamara para além das ondas? Ou antes e depois delas? Uma entrevista na casa que alugou, na Nazaré, que é a sua base para a batalha com o mar gigante. E sempre sob o olhar atento da mulher.

Garrett McNamara não estava bem-disposto, naquele início de noi­te em que tivemos a rara oportunidade de entrar na casa arrendada na Nazaré onde o surfista e a mulher, Nicole Macias, se instalaram neste ano. Os últimos tempos ti­nham sido de intensa solicitação da impren­sa. O dia já ia longo e cansativo, depois de uma viagem de negócios a Lisboa, e esta entrevis­ta, a terceira que nos deu ao longo dos qua­tro dias em que o acompanhámos de perto – ou o mais de perto possível – não era certa­mente a forma como o surfista queria acabar o dia. Mas a intenção inicial, desta vez, era conversar mais com Nicole. Garrett foi apro­veitando para mexer no computador, fazer uns telefonemas e colocar lenha na lareira da sala onde nos sentámos para a conversa, claramente ansioso para que tudo acabas­se depressa. Ainda assim, com a ajuda de Ni­cole, arriscámos. «Garrett, não se quer ago­ra sentar aqui e conversar mais um pouco?» Olhar fulminante. «Mas vocês ainda têm mais perguntas?» Nós tínhamos.

McNamara não gosta de estar quieto e foi assim desde muito cedo. Quando era crian­ça, foi encontrado pela polícia a vaguear so­zinho, a mais de um quilómetro de casa. Le­varam-no para a esquadra e telefonaram para o colégio interno onde o pai, professor de Latim e Inglês e treinador da equipa de basquetebol, trabalhava e vivia com a mãe do agora detentor do recorde do mundo da maior onda surfada. A mãe, conta, agora mais descontraído, nem sequer tinha nota­do que o filho tinha desaparecido.

 

Miguel Conde Coutinho e Raquel Teixeira
Nicole Macias, mulher de McNamara, e Nitzan Benhaim fazem parte da equipa de mais de dez elementos que acompanham o surfista.

«NaNamara» ou «Mécanamara», o surfis­ta de olhos e sorriso fáceis por quem a Naza­ré se apaixonou, nasceu em 1967, em Pitts­field, Massachusetts. A família mudou-se para a Califórnia mas, dez anos depois, a mãe, «uma nómada que gostava de viajar», quis que Garrett e o irmão mais novo, Liam, fossem com ela para o Havai.

Foi o início, aos 11 anos, da paixão pelo surf. Aos 17, tornou-se profissional, embora nos anos seguintes tenha sido o irmão a trans­formar-se na estrela surfista da família. Ele, que era conhecido como «o irmão do Liam», andou, como nos versos de Drummond de Andrade, entre «onda e amor (…) indagan­do ao largo vento e à rocha imperativa», à procura do seu lugar no surf. Entretanto, o dinheiro tornou-se insuficiente para pagar todas as contas e abriu uma loja de surf pa­ra compensar o balanço. Mas não era feliz. Queria passar o resto da vida apenas a sur­far. Por isso, em 2002, decidiu apostar tudo na vitória no campeonato mundial de surftow-in, a modalidade que, graças a um jetski, permite que os surfistas sejam rebocados para cavalgar ondas gigantes.

«Estava tão assustado», recorda. «O mar era tão poderoso e tão perigoso… A única coi­sa que eu queria, quando fui para a água, era conseguir sobreviver.» Não só sobreviveu como acabou por ganhar e, aos 35 anos, re­nasceu. «O Garrett consegue ser muito tei­moso», diz Nicole, a mulher de 30 anos com quem se casou em 2012, precisamente em frente ao local que «Garrett procurou to­da a sua vida»: o farol da Nazaré, que do to­po do desfiladeiro guarda e observa o pode­roso movimento das montanhas de água que se formam no fundo do «canhão» nazare­no e se desfazem na praia do Norte. Conhe­ceram-se em Porto Rico, num evento de ca­ridade. «Foi amor à primeira vista», garan­te Garrett. «Ele andou atrás de mim durante uns tempos e acabei por fugir com ele», con­ta Nicole, que nasceu na Florida e deixou para trás uma carreira de professora de crianças.

Foi provavelmente essa obstinação, pró­pria dos homens que conquistam coisas, que o ajudou a fazer a história da década se­guinte: percorreu o mundo à procura de on­das gigantes, ganhou prémios, colecionou recordes e transformou-se numa lenda. Em 2007, conseguiu surfar ondas produ­zidas pela queda de glaciares nos mares da costa do Alasca. Foi a última vez que sentiu uma verdadeira injeção de adrenalina a des­cer uma onda, por mais alta que tenha sido. «Posso dizer, honestamente, que já não sin­to medo e adrenalina a sério a surfar desde a minha experiência no Alasca. Já surfei tan­tas ondas que acho que perdi a sensibilidade, ou então aprendi a aproveitar o momen­to«, confessou-nos na primeira vez em que nos encontrámos, no quartel-general da sua equipa, no porto de abrigo da Nazaré.

Em 2005, Dino Casimiro, da Nazaré Qua­lifica [ver caixa], a empresa municipal que ge­re o projeto da autarquia baseado nos feitos de McNamara, enviou-lhe a primeira foto­grafia de uma onda gigante que se erguia na praia do Norte. Cinco anos depois, e após grande insistência, o norte-americano deci­diu-se a vir a Portugal. Ficou espantado.

A partir daí, a vila mudou. McNamara é admirado por todos os locais. «É uma pessoa espetacular, é muito simpático, até já tirei fo­tografias com ele.» E é graças a ele que agora o outono é mais um verão. Turistas e curio­sos vêm de longe para ver de perto as ondas. Surfistas de todo o mundo chegam para de­safiar os seus limites. «Toda a gente anda à procura da onda de cem pés [trinta metros]», diz. «Mas eu não. Eu estou à procura da onda de 120 pés. Que é para não haver dúvidas.»

A palavra não terá sido inocente. Nin­guém duvida que, em novembro de 2011, conseguiu surfar, na Nazaré, uma onda de cerca de 24 metros, batendo o anterior re­corde. Em janeiro deste ano, conseguiu o que outros procuram: cavalgou uma onda de cem pés. Mas as dúvidas sobre se o recor­de iria manter-se na lapela do norte-ame­ricano levantaram-se quando o brasileiro Carlos Burle, que veio pela primeira vez à Nazaré, conseguius surfar, a 29 de outubro, uma onda que se estimou poder medir mais do que a recordista de McNamara. Momentos antes, Maya Ga­beira, uma das surfistas que o acompanham, quase mor­reu afogada, ao tentar surfar outra vaga gigante.

«Foi o caos», confessou–nos Nicole, cujo papel na equipa é, a partir de terra, observar as ondas durante as idas ao mar, classifican­do aquela segunda-feira como o dia em que mais re­ceou pela vida do marido. «A Maya quase morreu e eu perdi a cabeça. Pedi-lhe pa­ra não surfar mais. Não valia a pena o ris­co.» Garrett acedeu e ordenou à sua equi­pa para só fazerem segurança, usando as motos de água.

A equipa não esmoreceu o entusiasmo, apesar do incómodo visível e não assumi­do publicamente. McNamara criticou a fal­ta de preparação dos brasileiros, que arrisca­ram uma tragédia, mas não mudou o discurso e continuou como sempre: «Estou aqui para ajudar a Nazaré e todos são bem-vindos.» Hu­go Vau, o único português escolhido por Gar­rett para surfar com ele, era a face de um gru­po confiante, e concentrado para as próximas jornadas de surf na praia do Norte.

O norte-americano não faz surf para ba­ter recordes, mas porque só assim será feliz. É, aliás, o que o casal faz fora do período de dois a três meses em que está na Nazaré. Via­ja por todo o mundo a tratar dos negócios – conferências, encontros com patrocina­dores, eventos ligados ao surf, etc. Tudo pa­ra que Garrett consiga continuar a cumprir o que acredita ser o seu destino: «Eu estou nes­te mundo para surfar.»

O HOMEM QUE TROUXE GARRETT À NAZARÉ
Foi Dino Casimiro, um «pioneiro das ondas da Nazaré», como lhe chama McNamara, o primeiro a enviar em 2005 uma fotografia ao norte-ameri­cano de uma onda da praia do Norte. E tanto foi insistindo que conseguiu. A ideia, explica-nos Pedro Pisco, da empresa municipal Nazaré Qualifica, era tentar fazer que McNamara puxasse pela vila e a colocasse no mapa mundial do surf, usando o nome de Garrett. Em 2010, quando McNamara chegou a Portugal, tinham conseguido amealhar vinte mil euros de patrocinadores. Três anos depois, o orçamento do projeto North Canyon já vai nos duzentos mil euros.

 

Miguel Conde Coutinho e Raquel Teixeira