Como é a vida de Garret McNamara para além das ondas? Ou antes e depois delas? Uma entrevista na casa que alugou, na Nazaré, que é a sua base para a batalha com o mar gigante. E sempre sob o olhar atento da mulher.
Garrett McNamara não estava bem-disposto, naquele início de noite em que tivemos a rara oportunidade de entrar na casa arrendada na Nazaré onde o surfista e a mulher, Nicole Macias, se instalaram neste ano. Os últimos tempos tinham sido de intensa solicitação da imprensa. O dia já ia longo e cansativo, depois de uma viagem de negócios a Lisboa, e esta entrevista, a terceira que nos deu ao longo dos quatro dias em que o acompanhámos de perto – ou o mais de perto possível – não era certamente a forma como o surfista queria acabar o dia. Mas a intenção inicial, desta vez, era conversar mais com Nicole. Garrett foi aproveitando para mexer no computador, fazer uns telefonemas e colocar lenha na lareira da sala onde nos sentámos para a conversa, claramente ansioso para que tudo acabasse depressa. Ainda assim, com a ajuda de Nicole, arriscámos. «Garrett, não se quer agora sentar aqui e conversar mais um pouco?» Olhar fulminante. «Mas vocês ainda têm mais perguntas?» Nós tínhamos.
McNamara não gosta de estar quieto e foi assim desde muito cedo. Quando era criança, foi encontrado pela polícia a vaguear sozinho, a mais de um quilómetro de casa. Levaram-no para a esquadra e telefonaram para o colégio interno onde o pai, professor de Latim e Inglês e treinador da equipa de basquetebol, trabalhava e vivia com a mãe do agora detentor do recorde do mundo da maior onda surfada. A mãe, conta, agora mais descontraído, nem sequer tinha notado que o filho tinha desaparecido.
«NaNamara» ou «Mécanamara», o surfista de olhos e sorriso fáceis por quem a Nazaré se apaixonou, nasceu em 1967, em Pittsfield, Massachusetts. A família mudou-se para a Califórnia mas, dez anos depois, a mãe, «uma nómada que gostava de viajar», quis que Garrett e o irmão mais novo, Liam, fossem com ela para o Havai.
Foi o início, aos 11 anos, da paixão pelo surf. Aos 17, tornou-se profissional, embora nos anos seguintes tenha sido o irmão a transformar-se na estrela surfista da família. Ele, que era conhecido como «o irmão do Liam», andou, como nos versos de Drummond de Andrade, entre «onda e amor (…) indagando ao largo vento e à rocha imperativa», à procura do seu lugar no surf. Entretanto, o dinheiro tornou-se insuficiente para pagar todas as contas e abriu uma loja de surf para compensar o balanço. Mas não era feliz. Queria passar o resto da vida apenas a surfar. Por isso, em 2002, decidiu apostar tudo na vitória no campeonato mundial de surftow-in, a modalidade que, graças a um jetski, permite que os surfistas sejam rebocados para cavalgar ondas gigantes.
«Estava tão assustado», recorda. «O mar era tão poderoso e tão perigoso… A única coisa que eu queria, quando fui para a água, era conseguir sobreviver.» Não só sobreviveu como acabou por ganhar e, aos 35 anos, renasceu. «O Garrett consegue ser muito teimoso», diz Nicole, a mulher de 30 anos com quem se casou em 2012, precisamente em frente ao local que «Garrett procurou toda a sua vida»: o farol da Nazaré, que do topo do desfiladeiro guarda e observa o poderoso movimento das montanhas de água que se formam no fundo do «canhão» nazareno e se desfazem na praia do Norte. Conheceram-se em Porto Rico, num evento de caridade. «Foi amor à primeira vista», garante Garrett. «Ele andou atrás de mim durante uns tempos e acabei por fugir com ele», conta Nicole, que nasceu na Florida e deixou para trás uma carreira de professora de crianças.
Foi provavelmente essa obstinação, própria dos homens que conquistam coisas, que o ajudou a fazer a história da década seguinte: percorreu o mundo à procura de ondas gigantes, ganhou prémios, colecionou recordes e transformou-se numa lenda. Em 2007, conseguiu surfar ondas produzidas pela queda de glaciares nos mares da costa do Alasca. Foi a última vez que sentiu uma verdadeira injeção de adrenalina a descer uma onda, por mais alta que tenha sido. «Posso dizer, honestamente, que já não sinto medo e adrenalina a sério a surfar desde a minha experiência no Alasca. Já surfei tantas ondas que acho que perdi a sensibilidade, ou então aprendi a aproveitar o momento«, confessou-nos na primeira vez em que nos encontrámos, no quartel-general da sua equipa, no porto de abrigo da Nazaré.
Em 2005, Dino Casimiro, da Nazaré Qualifica [ver caixa], a empresa municipal que gere o projeto da autarquia baseado nos feitos de McNamara, enviou-lhe a primeira fotografia de uma onda gigante que se erguia na praia do Norte. Cinco anos depois, e após grande insistência, o norte-americano decidiu-se a vir a Portugal. Ficou espantado.
A partir daí, a vila mudou. McNamara é admirado por todos os locais. «É uma pessoa espetacular, é muito simpático, até já tirei fotografias com ele.» E é graças a ele que agora o outono é mais um verão. Turistas e curiosos vêm de longe para ver de perto as ondas. Surfistas de todo o mundo chegam para desafiar os seus limites. «Toda a gente anda à procura da onda de cem pés [trinta metros]», diz. «Mas eu não. Eu estou à procura da onda de 120 pés. Que é para não haver dúvidas.»
A palavra não terá sido inocente. Ninguém duvida que, em novembro de 2011, conseguiu surfar, na Nazaré, uma onda de cerca de 24 metros, batendo o anterior recorde. Em janeiro deste ano, conseguiu o que outros procuram: cavalgou uma onda de cem pés. Mas as dúvidas sobre se o recorde iria manter-se na lapela do norte-americano levantaram-se quando o brasileiro Carlos Burle, que veio pela primeira vez à Nazaré, conseguius surfar, a 29 de outubro, uma onda que se estimou poder medir mais do que a recordista de McNamara. Momentos antes, Maya Gabeira, uma das surfistas que o acompanham, quase morreu afogada, ao tentar surfar outra vaga gigante.
«Foi o caos», confessou–nos Nicole, cujo papel na equipa é, a partir de terra, observar as ondas durante as idas ao mar, classificando aquela segunda-feira como o dia em que mais receou pela vida do marido. «A Maya quase morreu e eu perdi a cabeça. Pedi-lhe para não surfar mais. Não valia a pena o risco.» Garrett acedeu e ordenou à sua equipa para só fazerem segurança, usando as motos de água.
A equipa não esmoreceu o entusiasmo, apesar do incómodo visível e não assumido publicamente. McNamara criticou a falta de preparação dos brasileiros, que arriscaram uma tragédia, mas não mudou o discurso e continuou como sempre: «Estou aqui para ajudar a Nazaré e todos são bem-vindos.» Hugo Vau, o único português escolhido por Garrett para surfar com ele, era a face de um grupo confiante, e concentrado para as próximas jornadas de surf na praia do Norte.
O norte-americano não faz surf para bater recordes, mas porque só assim será feliz. É, aliás, o que o casal faz fora do período de dois a três meses em que está na Nazaré. Viaja por todo o mundo a tratar dos negócios – conferências, encontros com patrocinadores, eventos ligados ao surf, etc. Tudo para que Garrett consiga continuar a cumprir o que acredita ser o seu destino: «Eu estou neste mundo para surfar.»
O HOMEM QUE TROUXE GARRETT À NAZARÉ
Foi Dino Casimiro, um «pioneiro das ondas da Nazaré», como lhe chama McNamara, o primeiro a enviar em 2005 uma fotografia ao norte-americano de uma onda da praia do Norte. E tanto foi insistindo que conseguiu. A ideia, explica-nos Pedro Pisco, da empresa municipal Nazaré Qualifica, era tentar fazer que McNamara puxasse pela vila e a colocasse no mapa mundial do surf, usando o nome de Garrett. Em 2010, quando McNamara chegou a Portugal, tinham conseguido amealhar vinte mil euros de patrocinadores. Três anos depois, o orçamento do projeto North Canyon já vai nos duzentos mil euros.