Entre o livre-arbítrio e o determinismo – qualquer que ele seja – tenho tendência para escolher o primeiro. Em parte porque sou jornalista. Quem acredita na humanidade – e, mais uma vez, um jornalista nunca poderia ser de outra maneira – terá tendência para considerar que a liberdade individual de agir, de pensar, e, até, de achar é o bem mais precioso.
Dito isto, a realidade prova-me o contrário. Isto porque, e retomando as minhas considerações de verão da semana passada, tenho vindo a chegar à conclusão de que as estradas para as últimas praias da Costa de Caparica são a prova de que o liberalismo pode ser muito bonito em teoria mas na prática não funciona. E, neste caso, a explicação é simples de perceber até para quem vive noutro qualquer ponto do país sem acesso às praias da Costa.
Os argumentos contra o liberalismo começam na memória triste das construções desenfreadas. Nos anos 1980, a (muita e muito forte) iniciativa privada tomou nas suas mãos a construção de casas abarracadas, de gosto duvidosíssimo, que ainda hoje persistem na Fonte da Telha, por exemplo. Ao que parece, os direitos adquiridos – ainda que se pudesse dizer surripiados – impediram de arrasar todas as casas construídas sem licença e de uma vez só, como mereciam. Ainda assim, as coisas mudaram e a arriba e o baixio que levam ao extenso e paradisíaco areal passaram a fazer parte de uma área protegida. Foi bom. A regulação sucedeu à selvajaria. E isso foi bom.
O problema é que não chegou. E penso nisso – e nos tais argumentos contra o liberalismo – de cada vez que saio da praia, de uma qualquer que tenha acesso pela estrada de terra batida que finaliza a fileira. Que a estrada seja de terra batida já me estranha, é verdade. Quem olhar da praia vê um carreiro de árvores esbranquiçadas – acácias de costa, aroeiras e até pinheiros mansos. Não acredito que as árvores não sofram sufocadas de pó e de sujidade deixados pelos carros – mas isso é assunto para discussão técnica.
A mim importam as questões humanas. E a estrada da praia da Caparica tem-me feito pensar muito sobre teorias políticas, económicas e as suas aplicações práticas. Ao longo do dia os parques de estacionamento improvisados – junto das entradas da praia – vão-se enchendo. E as pessoas que não querem ficar presas, quando o trânsito se tornar intenso, na hora de ponta de saída da praia resolvem começar a estacionar na estrada. E começam a estacionar de um lado e tudo bem, nada a dizer, além do pó que comem até chegar à praia, mas lá está, são livres de levar com ele. Mas depois começam também a estacionar do outro lado da estrada. E aí tudo mal. Porque nitidamente não cabem nesta estrada minúscula duas filas de carros estacionados e mais duas a cruzar-se. A estrada é estreita e nunca foi alargada, apesar de este ser o estado das coisas há mais de 30 anos. E o que acontece depois? Os próprios, os que estacionaram ali, vão acabar por ficar horas na fila que eles próprios criaram. E não há um ano em que isto não aconteça. E nem a luz do interesse próprio ilumina estas cabeças.
E isso faz-me duvidar do liberalismo… enfim… se calhar não é o melhor dos sistemas. Nem para as estradas na praia… Entre o mito do bom selvagem e o que postula que o homem é o lobo do homem, a realidade faz-nos mais vezes pensar que o primeiro seria mais belo, mas é a verdade do segundo que nos entra pelos olhos dentro.
Publicado originalmente na edição de 10 de agosto de 2014.