«Lembras-te da primeira vez que bebemos uma imperial?» A pergunta não tinha um tom profético nem foi acompanhada de um olhar solene, por isso não lhe dei grande importância. Era só uma frase lançada para o ar depois do primeiro gole numa cerveja, numa dessas tardes de fim de setembro com sabor ao verão que não tivemos em julho ou agosto. «Não. Quando é que foi?»
Tinham passado quase seis anos desde aquela noite em que brindámos a duas coisas que viriam a tornar–se importantes. Uma nas nossas vidas (conhecíamo-nos há pouco tempo e nunca tínhamos bebido copos juntos), a outra na vida do P. (não interessa o nome, para esta crónica ele será só o P.): semanas depois, a miúda com quem ele tinha saído na noite anterior, e de quem não parava de falar, tornar-se-ia namorada dele; mais um par de meses e estavam a partilhar casa; um ano volvido estavam a mudar para outro espaço, maior, já a pensar em filhos. Mas não, eu não me lembrava daquela noite nem daquela primeira imperial. Lembro-me de outras que eu e o P. deitámos abaixo nos últimos anos, para celebrar vitórias (e lamentar derrotas) do Benfica ou da seleção, para festejar aniversários, para acompanhar caracóis ou frangos assados. A nossa memória encarrega-se de selecionar o que é verdadeiramente importante para reter. Porquê? Às vezes só o sabemos uns anos depois.
Em fevereiro deste ano, para celebrar uma década de existência, o Facebook lançou uma ferramenta nova que se tornou um caso sério de popularidade. Chamaram-lhe «A look back» e era um desfile das fotografias mais comentadas e «gostadas» de cada utilizador desde que se registou na rede social. Ao fim de três dias já não podíamos ver aquilo, tão fartos estávamos do festival saudosista lamechas que só interessava a cada pessoa e à sua família mais próxima, mas a verdade é que poucos deixaram de experimentar, mesmo que não partilhassem o vídeo. Eu também fiz o meu. E também me emocionei ao fazer as legendas mentais de algumas daquelas fotografias selecionadas por um raio de um algoritmo.
Quando o P. me perguntou por aquela imperial e me lembrou a importância daquela noite, eu lembrei-me de algumas fotografias do meu filme do Facebook. Estava lá a minha casa nova. A minha casa nova antes da casa nova. A minha primeira filha. A minha segunda filha. As primeiras férias com a minha mulher, na altura recém-namorada. Não tenho fotografias disso, mas juntei-lhe os primeiros metros que andei com um carro pago por mim. O dia em que saiu a última nota do meu curso. O dia em que fiz a escritura da minha primeira casa. O dia em que assinei o meu primeiro contrato de trabalho. A primeira vez que vi o meu nome num artigo de jornal.
Os meus fins de dia são feitos a contrarrelógio, a caminho de casa, dos banhos das miúdas, da preparação do jantar, do regresso à família. Mas quando um amigo nos diz, ao telefone, em tom sério, que precisa de falar, arranjamos tempo. Fazemos tempo. Naquele fim de tarde do mês passado, fiquei a saber que a relação do P. já era passado, que ele estava à procura de casa, que ela tinha engravidado e abortado entretanto, quando as coisas já estavam mal, que a reconciliação não tinha resultado, que ele estava a viver em casa de um amigo e que ela tinha um namorado novo. Sete imperiais depois, cheguei a casa bêbedo. Não ajudei nos banhos, não ajudei a fazer o jantar nem sequer arrumei a cozinha. Mas ouvi um amigo. Dentro de uns anos, vou-me lembrar dessa tarde de fim de setembro. Da dor de cabeça na manhã seguinte. Do P., que nessa altura já terá outras coisas para contar. E das memórias de que somos feitos.
Publicado originalmente na edição de 12 de outubro de 2014