Escondida atrás de azul ultramarino

Notícias Magazine

Um dia de 1963 ou 1964, rapaz, eu via um filme-documen­tário chamado Mundo Cão, sucesso que fazia as delícias da minha plateia luandense e da conta bancária do realizador Gualtiero Jaco­petti. Em breve o italiano ia repetir a dose (Mondo Cane 2), pois o que não faltava no mundo eram coisas estranhas. A câmara passeava-se por pescadores malaios vingativos a meter ursos do mar nas goelas de tubarões, talhos de Taiwan onde se abatiam cães, fãs california­nas a rasgar a camisa ao canastrão Rossano Brazzi, enfim, rituais do bicho-homem. Havia também um pintor francês, Yves Klein, dirigindo uma orquestra de violinos e um grupo de mulheres nuas a pintar-se com o azul ultramarino inventado e patenteado pelo artista, o International Klein Blue. Eu não sabia que Klein tinha sofrido um ataque de coração durante apresentação do Mundo Cão no Festival de Cannes e morrera, semanas depois, em 1962.

Aliás, eu não sabia quem era Yves Klein, artista plástico vanguardista, com vida curta mas agitada e influente. A sua primei­ra exposição foi feita em outubro de 1955, tinha ele 27 anos, no Club des Solitaires, um hôtel particulier, como os parisienses chamam às vivendas vastas e luxuosas. A exposição, que passou despercebida, já apresentava os depois célebres quadros monocromáticos de Klein. No entanto, uma busca na Internet agora feita com o nome «Club des Solitaires» revela milhares de links remetendo para a tal «primeira exposição de Yves Klein, em 1955», mas mais nada senão a curta menção. E tirando essa exposição, com as suas milhares de referências secas, a pesquisa de «Club des Solitaires, Paris» só nos leva para três outras ligações: um pequeno artigo num obscuro jor­nal suíço, L’Impartial, sobre o curioso clube parisiense, em 1957, um link para a videoteca de Paris com um documentário sobre a elei­ção da Miss Solidão, no réveillon de 1963, e um anúncio na revista Le Nouvel Observateur sobre aulas de ioga em grupo, em 1968. Hoje, o clube já não existe mas não sei quando acabou. Como é que uma casa parisiense com nome tão extraordinário, «Club des Solitaires», pode ser quase apagada de tudo, como exceção da tal exposição his­tórica, milhares de vez referida e de forma tão breve?

Ora, o rapaz que, em 1963 ou 64, se cruzou em Luanda com o pintor Klein, por cinema interposto, meia dúzia de anos depois des­cia na estação de metro Trocadéro, virava as costas ao Sena e à Tor­re Eiffel e entrava pelo XVI, o bairro mais rico de Paris, ladeando o pequeno cemitério de Passy. Eu tinha chegado a Paris em setembro de 1969 e ali tinha encontrado o meu primeiro emprego, passear cães pela avenida Georges Mandel. Agora, ia à procura do segundo, também trabalho de circunstância. No cruzamento com o nº 36, onde morava Maria Callas, virei à esquerda, para pequena rua Cortambert, de hôtels particuliers e prédios burgueses. No 39, toquei à campainha e entrei no Clube des Solitaires.

Dois andares com alcatifas e paredes púrpuras, quadros modernos, um bar, salão de jantar e de conferências. A dona era velhinha e altiva, Renée Lacoste, antiga editora, que publicara Diário de um Celibatário e Destino de Mulher, títulos que revelavam a vocação de juntar solitários, que ela desde os anos 1950 ali cumpria. Eu servia no bar, ouvia conferências educativas como «As boas maneiras acabaram?» e levava bebidas às mesas de bridge. Um dia subi ao terceiro andar, dos aposentos particulares de Renée e do filho, um quarentão que não fazia nada exceto posar de gentleman nos salões. No quarto de madame, com moldura de tartaruga, havia uma foto dela nua, belíssima e jovem, pousada numa rocha de ilha que talvez fosse grega.

Naquele tempo, os meus empregos eram breves, duravam semanas. Agora lembrei-me de procurar «Renée Lacoste» pela Internet e tal como a primeira exposição de Klein nada diz do Club des Solitaires, René Lacoste, o tenista e fundador das camisas com marca de crocodilo, apaga Renée. Que estava ela fazer em Corfu, nos anos 1930?

Publicado originalmente na edição de 3 de agosto de 2014.