E antes do adeus…

Em 2013 estima-se que tenham saído do país entre 100 e 120 mil portugueses. Saíram em busca de sobrevivência ou melhores condições de vida, porque sabem que não as têm em Portugal. A Notícias Magazine foi assistir a um ritual cada vez mais frequente, as festas de despedida e os últimos dias de quem parte. Em que a alegria da amizade se confunde com a angústia da separação. Os derradeiros prazeres. Os abraços finais. Os últimos brindes. Antes do adeus a Portugal.

A mesa está posta e há comida com fartura, ou não fosse esta uma casa portuguesa, com certeza. Queijo, pão, pastéis de bacalhau, camarões, rissóis, batatas fritas, presunto, trouxas de ovos, palhas de Abrantes, tigeladas. Aurora Alves anda numa roda-viva para que tudo esteja bem, para que nada falte, para que a festa seja memorável. Ninguém diria que, se a escolha fosse sua, jamais a festa teria chegado a acontecer. É a festa de despedida da filha Sofia, que vai emigrar para Maputo (Moçambique).

São 19h00 e todos os convivas já chegaram a casa dos pais de Sofia, em Cabeça das Mós, no Sardoal. O ambiente é animado mas existe uma névoa qualquer, ainda que muito ténue. E existe. Todos os que ali estão são amigos ou família e o momento, apesar de ser de partilha e de convívio, é também um momento de pré-separação. Uma antecâmara do adeus.

Nas estantes, há bibelôs africanos e livros que parecem ter sido ali colocados de propósito para o evento, como adereços de uma peça bem encenada. As Lendas Portuguesas e Aventura da Vida remetem para um país que se deixa para trás e para um novo começo. De vez em quando há uma voz que se eleva, como que para quebrar o gelo que, sem nunca se chegar a instalar, por vezes parece ameaçar, ao de leve, o ambiente. «Sofia! Muda de ideias, vá lá! Quem é que vai cozinhar para mim agora, quem é?» Sofia sorri, há um outro que responde um previsível «eu cuzinho para ti», todos se riem, e o friozinho triste que começava a adensar-se, dissipa-se.

 

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Sofia Alves vai trabalhar para Moçambique. Espera que o recém-marido Carlos possa ir para junto dela em breve.

Sofia Alves tem 37 anos, é contabilista, e está desempregada há três meses. Não é muito, não é nada quando comparado com alguns casos verdadeiramente desesperados, como o do marido, José Coelho, comercial, sem emprego há quatro longuíssimos anos. Mas mal se viu na rua, e consciente do estado do país, Sofia começou logo a tentar a sorte “lá fora”. E assim que conseguiu emprego em Maputo, casou. «Casámos a semana passada, no registo civil, sem ninguém saber, justamente para ver se, depois de eu já lá estar, consigo que ele venha ter comigo. Já namorávamos há dez anos, de maneira que um dia mandei-lhe uma mensagem a perguntar se ele casava comigo. As pessoas ficaram todas muito zangadas connosco por não terem estado presentes, mas nós tínhamos muita coisa para tratar.» E foi assim que a festa de despedida se tornou, ao mesmo tempo, uma espécie de boda.

Na televisão vai passar o derby Benfica-Sporting e há um grupo que se prepara para assistir. Quem não para, nem para jogos nem para coisa alguma, é Aurora. Talvez seja para que tudo continue impecável, ou então é mesmo só para não pensar muito no assunto que os levou, a todos, ali. «Nem quero pensar, sabe? O que é que hei de fazer? Ela diz que é o melhor… uma mãe quer acreditar que sim. Mas que custa, isso custa.» E, dito isto, a mãe da quase emigrante põe-se em fuga, que os olhos são traiçoeiros e ela não quer estragar o momento.  Traz os tabuleiros com bacalhau com natas, recebe elogios, e continua a fazer de conta que está tudo bem.

Manuel Alves, o pai, tem outra postura, ainda que só ele saiba como está por dentro. «A vida é assim. Eu encorajei-a a ir. A minha mulher não, está triste. Mas eu acho que ela estar parada é que não pode ser. Em casa é que não. É para a frente! Aqui, neste país, não há futuro.» Este país de que se fala é tradicionalmente um país de emigrantes. Em momentos de aperto, os portugueses sempre pegaram nas trouxas e puseram os pés ao caminho. Ainda assim, parece que nada nos prepara para o adeus. Nada nos prepara para o dia em que a despedida nos toca a nós, a alguém próximo, a quem nos faz falta. Aí, não há tradição ou História que nos valha. Aí é só dor e saudade e o chão que parece fugir debaixo dos pés.

De novo uma brisa fria, de novo uma piada que alguém atira, «Ó Sofia, agora para falares comigo lá das áfricas vais ter de fazer sinais de fumo!», ah, ah, ah, e eis que a festa volta à normalidade possível. Mal se cruzam os talheres, é hora de cortar o bolo: uma espécie de bolo de casamento, branco, com o mapa de África desenhado, uma boneca vestida de noiva em cima do continente a puxar um noivo por uma corda: «Sou eu a levar o Coelho pela trela», explica Sofia, e riem todos, exceto Aurora, que tem pouca vontade de rir.

A noiva, que por acaso já está casada, remove então os bonecos, sem saber que presas a eles estão as alianças. Quando as encontra, sorri, beija o noivo, que por acaso já é marido, põe-lhe o anel no dedo, ele faz o mesmo, e todos aplaudem, e há lágrimas rapidamente escondidas, e os brindes são alegria e tristeza, tudo ao mesmo tempo.

 

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Raquel Carrilho para os EUA, onde vive o namorado. E onde espera encontrar um futuro.

Mudança de cenário. As mesmas emoções. Quem não tem qualquer alegria, nem um nano-pedaço para amostra, é Bernardino Carrilho, pai de Raquel, prestes a apanhar o avião para Washington. Está hirto como uma vassoura. Cada passo que dá, no Aeroporto de Lisboa, parece rumo ao abismo. Ele bem procura disfarçar, mas não está fácil. Fernanda, a mãe, também leva amargura no olhar mas tem, apesar de tudo, outra força. Vai repetindo, de si para si e em voz alta, que isto agora com as novas tecnologias é tudo mais fácil, que vai custar no início mas depois é uma questão de hábito, que vai ser melhor para ela, que ainda cá fica a outra filha e as netas, ai o que lhe valem são as netinhas, para dar alegria.

A filha vai à frente, como se tivesse pressa de se ver livre de tudo, como se já só pensasse em estar do outro lado do mundo, quase como se houvesse uma dissociação entre a alma (já do outro lado do Atlântico) e o corpo, ainda preso por cá. A verdade, porém, é outra. A despedida é-lhe tão dolorosa que vale mais despachá-la depressa.

Raquel Carrilho tem 28 anos, é licenciada em Cinema e tem um mestrado em Arte Contemporânea. Desde que acabou o mestrado, em 2009, não arranjou mais do que bolsas e trabalhos eventuais como freelancer, sem qualquer estabilidade. Foi numa dessas bolsas que conheceu o namorado, Michael. «O Mike era um estudante americano a fazer uma pós-graduação em História na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tínhamos amigos em comum, começámos a sair, a namorar… e há cerca de 8 meses decidimos que seria melhor eu ir para lá, com visto de noiva. Podíamos ficar cá mas, com a crise, não consigo arranjar um emprego de jeito. Ele não fala português, é cozinheiro… o que ia ser de nós, por cá? E foi assim que comecei a desenhar a minha vida, a nossa vida em Wilmington (Carolina do Norte), onde ele vive.»

Os pais, começaram a ouvir falar de Mike para lá e Mike para cá, primeiro sem dar grande importância, depois a sentir um certo frio na espinha. E se? Secretamente, em silêncio, cada um deles começava a sentir germinar a semente de um receio: e se a filha, descontente com a precariedade lusa e aproveitando o facto de ter um namorado americano decidisse partir para a terra das oportunidades? Talvez nem tenham chegado a levar o pensamento até ao fim, dentro do cérebro. Talvez, por defesa, tenham apenas pensado “e se?”, sem sequer completarem o resto da ideia, não fosse o diabo tecê-las.
Agora, no Aeroporto de Lisboa, Bernardino caminha pesadamente, como se recusasse ainda aceitar a ideia. Bernardino ajeita a voz, tentando que ela não lhe falhe: «Sabe, nós somos gente pacata. Somos de Riachos, uma terra muito tranquila, onde pouca coisa acontece. E agora… agora aqui estou eu, o Carrilho de Riachos, a acompanhar a minha filha até a um avião que a levará para o outro lado do mundo, para viver uma vida completamente diferente. Isto… isto é muito difícil de encaixar.»

Dias antes do dia da partida, houve também festa de despedida, no bar Solar do Rainha, em Riachos (Torres Novas). Muitos amigos e, como sempre, comida e bebida. Chouriço assado, empadas, pão. Pudim, arroz-doce, bolinhos vários. E, mais uma vez, um jogo na televisão, desta vez da seleção a que ninguém parece dar assim tanta importância. Não deixa de ter a sua ironia: portugueses a despedirem–se de mais um que parte à procura de uma vida melhor, e na televisão a equipa desse país por que torcemos. De certo modo, o contraste entre o país que não tem condições para os seus e o país que, apesar de tudo, amamos.

Raquel, com os seus longos cabelos ruivos, desliza por entre os convidados distribuindo sorrisos e abraços e brindes. De quando em vez chega uma amiga mais próxima e os abraços tornam-se mais demorados, pequenas catarses da emoção que é difícil de gerir: por um lado há tudo o que fica (família, amigos, lugares de sempre, coisas, referências), por outro há tudo o que a espera (o namorado, uma nova vida, possibilidade de futuro, a aventura da descoberta).

Com um copo de vinho na mão, Raquel fala, sobretudo, das sobrinhas. «A Juliana tem 5 anos e a Petra tem 3. São filhas da minha irmã. Como tenho tido estes empregos precários e bolsas, passo muito tempo com elas. Quando vêm da escola, vão sempre a correr ter comigo e brincamos, pintamos, contamos histórias… Nem posso pensar muito em ficar sem elas, que fico com um aperto no peito. Mas hoje há o Skype e havemos de nos ver todos os dias.»

Quando a melhor amiga, Ana, chega por fim ao Solar do Rainha, há como que uma paragem do tempo. As duas ficam agarradinhas e Raquel, que tem controlado com valentia as emoções, deixa-se levar pelo momento. Quando vê que a amiga lhe trouxe um bolinho em forma de coração, desmancha-se. A festa, em redor, não se dá conta de que, ali, o tempo parou. E a despedida torna-se menos festiva e cruelmente mais real. No Aeroporto de Lisboa, tudo é assim, mais real, mais carne viva. Raquel disfarça mal a ansiedade, não quer chorar e parece fria, recebe os amigos com abraços e sorrisos enquanto os pais e a irmã Sofia estão um pouco mais afastados, o pai de mãos atrás das costas, em silêncio, mirando a filha que se prepara para partir, muito provavelmente para sempre, só voltando aqui e ali, numas férias ou circunstância especial.

Quando chega, por fim, o momento de se despedir da família, há uma descompressão brutal. Raquel deixa cair a máscara de miúda forte e resolvida, que segue o seu caminho e o seu amor sem grandes dramas («afinal há sempre o Skype»), e deixa-se afundar nos braços dos pais. A frase soa pirosa mas não há outra forma de descrever a cena. Ali, naquele instante, Raquel é a menina de seus pais, e todos choram sem pejos, sem embaraços, sem controlo. Bernardino é agora um homem pequeno, porque foi diminuindo de tamanho desde que chegou ao aeroporto. Dir-se-ia que a alma acaba de lhe ser arrancada. E chora, como uma criança, para depois repetir: «Nós somos de Riachos… gente boa, já lá foi? Há de lá ir visitar-nos. Somos gente pacata e agora é isto. A minha filha foi-se embora e nós aqui ficamos. Mas havemos de nos acostumar, não é? Afinal… há sempre o Skype…»

 

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Ricardo e a mulher Ana vão para o Brasil, sem contrato, sem emprego, mas com confiança. Fotografia de Tony Dias/Global Imagens


É com a mesma lengalenga que Ricardo Rodrigues, 32 anos, nascido e criado em Aveiro, tenta convencer-se de que tudo será menos difícil, sobretudo quando pensa na sobrinha de 5 meses, Lara, talvez a pequena pessoa de quem vai sentir mais saudades quando estiver a viver no Brasil. A sua partida deve-se a uma conjugação de fatores: «Primeiro porque tenho uma adoração pelo Brasil. Depois, pela situação económica do país. A precariedade do trabalho é aflitiva. As pessoas vivem com contratos a termo, chega ao fim das três renovações e adeus, têm de trabalhar como burros de carga, fazer o trabalho dos que são despedidos e não ganhar nem mais um cêntimo. E ainda temos de estar agradecidos por termos emprego! Porque o mais certo é não se conseguir encontrar nada.»

Até nem foi o caso dele. Depois de alguns anos de diletantismo, arrastando-se na Universidade de Aveiro, num curso de Meteorologia e Oceanografia Física, mas muito mais interessado na tuna Cartola, na exploração de um bar e na direção da associação académica (leia-se noite, noite e noite), acordou certo dia para a vida, curiosamente coma morte do pai. «Foi aos 52 anos, com um cancro no pulmão, fez-me pensar: ‘ele começou do nada e conquistou uma vida boa. E eu? O que é que eu já fiz? Tenho 28 anos, não tenho carro, casa, não tenho uma carreira, não tenho nada.’ E foi então que mudou para um curso de especialização tecnológica, e formou-se em Gestão de Qualidade. Seguiu-se um estágio de três meses e depois arranjou logo emprego.

Ricardo Rodrigues é um caso relativamente atípico. Não se pode dizer que a vida lhe corresse mal. Mas, de facto, chega a ser peculiar quando um povo se contenta por ter emprego, quase como se fosse obsceno pensar em querer mais do que isso. Ricardo não quis contentar-se. «As pessoas que fazem o mesmo que eu, no resto da Europa ou no Brasil, ganham três vezes mais. Mas não é tudo: lá não se faz o trabalho de cinco. Não se é pau para toda a obra. E sai-se do trabalho a horas de ainda ter uma vida. No outro dia, uma colega alemã contava-me que ficou mais meia hora no trabalho e que, no dia seguinte, a chefe achamou, preocupada, a querer saber porque tinha sentido necessidade de ficar mais tempo a trabalhar. Eu até me ri, para não chorar.»

Foi assim que decidiu embarcar nesta aventura com a namorada, Ana Silva, engenheira civil. E é, de facto, uma aventura. Ricardo e Ana vão sem contrato, sem emprego, sem mais do que contactos de amigos, em casa de quem vão ficar. Mas tem um plano. «Andámos a pesquisar algumas empresas onde faz sentido que entreguemos os nossos currículos e vamos andar, por algumas cidades do Brasil, a entregá-los e a ir a entrevistas. Quando um de nós arranjar emprego, a ideia é que o outro se esforce mais para conseguir na mesma zona. Estamos confiantes. Todos os amigos que têm ido têm conseguido bons empregos.»

De Portugal, Ricardo leva saudades várias. Da mãe, do irmão e da cunhada, da família em geral. Da sobrinha Lara – “muitas!” – porque os bebés têm essa coisa mágica de conseguir agarrar o mais desgarrado, de fazer perder de amores quem até se julgava suficientemente desligado para partir sem olhar muito para trás. Ricardo pega na «sua» bebé ao colo, admira-lhes os olhos de um azul impossível, adoça a voz e encosta-a a ele, como se quisesse aproveitar cada minuto desta proximidade. Resta-lhe o consolo de que, em maio, voltará a Portugal, em princípio apenas para tratar da documentação para depois voltar ao país do samba, já como trabalhador e residente. Aí matará todas as saudades da sobrinha, e, então, sim, a partida será bem mais dolorosa, porque definitiva.

As patuscadas com os amigos – para lá dos amigos propriamente ditos – serão recordadas com outro nó na garganta. E é assim que, depois de deixar a sobrinha, segue para o Mercado do Peixe da Costa Nova para comprar percebes. «Ai, as saudades que nós vamos ter de percebes, não é Ana? Lá não há. Claro que há coisas muito boas para substituir. Mas andamos a encher a barriga de percebes – e de amigos e de Lara e de tudo o que gostamos e vamos deixar por cá.»

 

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Ana Chainho contempla as ondas de Santo André dias antes da partida com o marido e o filho de 16 meses para Abu Dhabi.

Amigos é o que não falta nestas festas de despedidas que são tanto para quem vai como para quem fica. No Bar das Avencas, na Parede, todos quiseram vir despedir-se de Ana Chainho, 32 anos, prestes a emigrar para Abu Dhabi. O jantar já terminou e Ana vai discursar:

«Pessoal! Oiçam! Malta? Quero agradecer a todos por terem vindo e espero que em breve me possam ir visitar para eu não estar lá no deserto sozinha com esta peste.» A “peste” é o filho, 16 meses, que há de embarcar com os pais nesta nova etapa da vida. «Já sei que vou ter de arranjar um T10, pelo menos, para vos receber a todos. Espero que não sejam muitos anos por lá, mas só alguns. Espero que me vão mantendo atualizada de tudo o que por cá se passar. E programem os nascimentos dos filhos para agosto, que vou ser a emigrante típica e em agosto conto estar por cá.»

Quando termina de falar, Ana começa a desembrulhar uma espécie de faixa enorme e exibe-a para a assistência. Na faixa pode ler-se um «I’ll be back» que emociona algumas amigas e faz que outras, talvez para afastar essa mesma emoção, exclamem um «ooooooh» entre o enternecido e o gozão. «E agora façam o favor de fazerem uma dedicatória na faixa que eu quero levar isto comigo e pôr lá numa parede da casa nova.»

Todos batem palmas, ouve-se o som de um nariz a ser assoado, Ana Chainho nasceu em Santo André. «Fiz Línguas e Literaturas Modernas, na Nova, em Lisboa. Depois fiz uma pós-graduação, ensino, para poder ser professora. Quando acabei, fui logo dar aulas, em Oeiras no primeiro ano, em Paço de Arcos nos três anos seguintes.» Seguiu-se uma escola profissional no Parque das Nações, em Lisboa, e outra secundária em Cascais. «Mas no ano letivo 2012-2013 as coisas complicaram-se e não fiquei colocada. O meu marido, que é engenheiro civil, também ficou desempregado logo no início de 2012. Decidimos então voltar para Riachos. Ele à procura de emprego, eu a dar aulas de enriquecimento curricular (AEC). Pouco depois ele conseguiu trabalho aqui em Santo André, a recibos verdes. E quando surgiu a proposta para que ele fosse para Abu Dhabi… pensámos muito. Mas percebemos que era o mais sensato. Pus-me a acabar o mestrado e espero safar-me por lá, com o Inglês do curso.»

Ana passeia por Santo André, uns dias antes da festa e outros tantos antes da partida. Passeia pela praia preferida, contempla as ondas. «Às vezes, com a quantidade de coisas que há para tratar até me esqueço de pensar, de perceber exatamente o que estou a sentir.» No centro de Santo André, passa por casas ao abandono, lojas fechadas, lugares que foram importantes na sua vida e que agora não passam de espaços com nada dentro e suspira. «Este centro comercial está completamente deserto. Aqui não há nada, não há ninguém. É um desalento. Sobra o café Perca Tempo. Vou ter saudades os melhores croissants do mundo.» Ana pede um croissant de ovo e come, de olhos fechados.

A mãe, Gi, diz que prefere não pensar na partida. «Falo disso ao de leve, como se fosse assim para daqui a muito tempo ou como se fosse outra pessoa qualquer a ir. O que me custa muito é o Kiko, o meu neto. E como eles vieram para Santo André, acostumei–me a vê-lo crescer. Agora… bom! Vamos almoçar?» Na mesa, as coisas de que Gi mais gosta: arroz de pato, quiche, frango assado. Para a sobremesa, tarte de amêndoa e doce de leite condensado. «Ai, mãe… como é que eu vou sobreviver sem estas comidinhas? Dá para mandares por correio?»

Na festa de despedida, as amigas preparam uma surpresa que não tem que ver com comida. Mete um computador, cabos e a televisão grande, presa na parede do Bar das Avencas. No ecrã aparecem várias fotografias, musicadas, em que Ana e os amigos estão a rir que nem perdidos, deitados no chão, em poses estranhas, outras ridículas, com caretas parvas, e todos riem às gargalhadas mesmo quando não há ali nada para rir. Mas há, claro, porque as fotografias trazem consigo a memória do momento, e nada favorece mais a memória de um momento do que a saudade que se sente ou sentirá dele.

No final da sequência de fotos sobressai uma frase. Uma frase que faz Ana saltar da cadeira e largar a chorar abraçada aos que estão mais perto. Uma frase certeira: «Nós somos o sítio que nos faz falta.» É o que é. Para Ana e todos os outros que vão embora. Eles vão-se embora, alguns não voltarão, mas serão sempre, nem que seja apenas um bocadinho, este sítio que lhes faz falta.