Dois mundos, dois géneros

Notícias Magazine

Num dos livros da minha vida, Na Patagónia, Bruce Chatwin conta-nos que o americano Butch Cassidy, assaltante de comboios foragido, viveu na povoação argentina de Cholila e ainda voltou, no Outono de 1925, à sua cidade natal, no Utah, «para comer uma torta de amoras com a família». A versão oficial é outra, Butch Cassidy e Sundance Kid, outro bandido americano, morreram em 1908, cercados pelo exército boliviano, em San Vicente, na Bolívia, depois de terem roubado 15 mil pesos a um burro e escolta. Esta variante é a que nos foi contada em Butch Cassidy and the Sundance Kid (Dois Homens e Um Destino), filme de 1969 com Robert Redford e Paul Newman.

Na cena final, Cassidy e o Kid estão feridos, têm quatro revól­veres e estão cercados por soldados com metralhadoras. Numa casa de paredes de adobe, numa povoação miserável, os dois mais famo­sos bandidos de então ainda deitam promessas de emigrar, um dia, para a Austrália. Depois, olham um para o outro, decidem com um olhar e atiram-se para o pátio aberto, enquanto um oficial grita: «Fuego!» A imagem fixa-se, em sépia, no adeus daqueles dois ho­mens, de pé, ainda com os levianos revólveres nas mãos. The End.

Lembrei-me deste grand finale na semana passada, ao ver o fim grandioso de outro filme, também estrada fora de uma amizade vi­ril. Viril no sentido geológico do termo, pois chama-se assim aos rios quando eles estão na fase mais pujante, mas, na verdade, quem é pro­tagonista deste segundo filme são duas mulheres, como diz o título Thelma e Louise. O filme é de 1991, pouco mais de vinte anos depois de Robert Redford e Paul Newman terem encurtado o diálogo para se lançarem no irreparável, também Geena Davies e Susan Sarandon, só com duas pistolas para dividir entre as duas, encurra­ladas no alto de um desfiladeiro por uma armada de polícias (até me­tia helicóptero), atiram-se de cabeça. «Go!», diz Geena (Thelma). Su­san (Louise) beija a amiga na boca, acelera, elas levantam as mãos da­das – não, elas não usam os revólveres – e o Ford descapotável, Thunderbird 1966, voa. Não, não vai contra os polícias, vai no sentido contrário e voa pela ribanceira do Grand Canyon. A imagem fixa-se, em azul do céu, no adeus daquelas duas mulheres. Dois The End tão idênticos e tão opostos no género…

Revi Thelma e Louise quando o nosso país das redes sociais discutia mais um 8 de março e o desperdício de um Dia da Mulher. Porque é que as mulheres têm de ter um dia especial? Pois, não sei. Não sei se aceitarmos que elas são abençoadamente especiais, como hão de reconhecer os polícias do Novo México que não tiveram de so­frer, só testemunhar, o ato desesperado de duas mulheres encurrala­das. Eu sei que é ficção, eu sei que podiam encontrar-se exemplos de mulheres sanguinárias (dias antes, aliás, Louise tinha metido um ba­lázio num violador). Mas, no momento da criação, o guionista e o re­alizador consideraram que o próprio de duas mulheres, mesmo desesperadas, é voarem e não venderem caro a sua vida. Por seu lado, em Dois Homens e Um Destino ninguém pensou pôr os bandidos a ren­der-se: Cassidy e o Kid partiram, naturalmente, matando.

Thelma e Louise são duas amigas, a primeira mal casada com um bruto e a segunda companheira de um ausente, Jimmy, cantor barato que anda sempre em digressão. Elas combinam um fim de semana só delas, mas tudo descarrila. Louise mata um tipo que tentava violar Thelma e, sem justificação para a morte, elas fogem para a frente. Meter-se à estrada é o fio dos romances e filmes ame­ricanos. O marido de Thelma alia-se à polícia na perseguição, mas Jimmy vai a Oklahoma City dar dinheiro à amante. Ele pensa, é homem, que Louise fugiu por causa de outro homem. Ela conta-lhe a engrenagem infernal e ele oferece-lhe um anel de noivado. Ela, mulher, diz que é tarde. No restaurante do motel dão um beijo de despedida. Ao fundo, três empregadas comovem-se. No outro fundo, um cliente faz que não vê.

Dois mundos. Eu sou de um, mas amo mais o outro.

[Publicado originalmente na edição de 16 de março de 2014]