
dedicado a Martin Kippenberger
Foi ele quem disse: «Não posso cortar uma orelha todos os dias.»
A arte é uma presença física num espaço que não o da existência. Estou num outro lado, poderá dizer qualquer artista.
Pensemos num projecto de ligar o mundo, de uma ponta à outra, por baixo: um sistema de transporte, um metro universal que tornasse o conceito de dar uma volta ao mundo semelhante ao conceito de dar uma volta pela cidade. Mas nem todos os países têm subterrâneos moles; por vezes a terra torna-se mais compacta, como se insistisse na ideia de ser um elemento natural – algo que recusa a engenharia.
E claro que a natureza não é uma folha branca onde podes inscrever as frases que te apetece; a natureza material, ocupando espaço e apresentando-se já com uma forma concreta, está mais próxima da ideia de um livro já escrito do que de uma folha em branco. Ou seja: o que resta à tecnologia humana é escrever nas margens da natureza, nos pequeníssimos espaços em branco que esta, por delicadeza, deixou.
Julgamos estar a escrever no centro dela (as pomposas inaugurações dos grandes edifícios são disso o exemplo), mas afinal é a natureza que escreve invisivelmente no nosso elemento principal – no tempo. E o facto de sermos mortais prova-o.
Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
[Publicado originalmente na edição de 9 de novembro de 2014]