O 25 de Abril… Cheguei a França em setembro de 1969 e abandonei-a a 1 de maio de 1974. Vivi esses tempos, com balizas datadas pela política, deslumbrado e feliz. Durante cinco anos, naquele registo político de vida, fui recebido e expulso de pequenos partidos ridículos e generosos, participei em manifestações grandiosas e violentas, convivi com tipos inteligentes e devotados e com outros espertíssimos a pensar em furar bolos.
Estes últimos imitavam, apesar de viverem na contradição de perder tempo em lugares que não levavam longe, aquela personagem do romance americano então famoso, O Que Faz Correr Sammy?, que começou como paquete de jornal e acabou empresário dum grande estúdio de Hollywood. Outras vezes, em internacionalistas reuniões de célula, era assim que chamávamos a cinco ou seis jovens a mudar o mundo, eu discutia com uma grega de olhos de passionária a melhor maneira de os operários da fábrica de relógios Lip vergarem o patronato em Besançon, a 300 quilómetros de Paris. Os oportunistas prepararam-me para topar logo, até numa esquerda que se pretende sempre ingénua, o colega deles que eu haveria de encontrar pela vida fora; da grega, se não me lembro de um só argumento que nos opôs, recordo-me de uma paixão que nos juntou. Isto para vos dizer que, apesar do registo político, o que eu estive foi a viver.
Os meus primeiros passos em França foram dados clandestinos, sem documentos. E, no entanto, sem grandes riscos: a grande roda que movia a Europa, a necessidade que ela tinha de mão-de-obra, abriu-me as fronteiras. O guarda fronteiriço de Hendaye que mandou passar o tipo à minha frente se calhar não se importou que eu, que não tinha passaporte, me colasse à ordem de avançar porque provavelmente ele tinha ordens mais urgentes: deixar entrar muitos portugueses, quantos mais, melhor. Desertor, posso sempre pensar que passei uma tangente a ter sido preso e deportado. Mas talvez não tivesse sido bem assim.
Horas depois, sem documentos, sem dinheiro e com três moradas, cheguei a Paris, onde as coisas se desenrolaram como nos guiões perfeitos: os dois primeiros endereços falharam. No terceiro, porém, disse-me um amigo que acabara de conhecer: «Dormes aqui, no chão.» Pudera, não havia mais espaço naquele quarto de bonne, de criada, num sexto andar de prédio parisiense que se sobe por escadas estreitas e com casa de banho comum, no patamar. Eu disse que era por alguns dias, foi por três meses. Eu estava de passagem, como estive sempre nos meus quase cinco anos franceses.
Um dia, ergo os olhos e no alto da escadaria está a Vitória de Samotrácia. Não se pode ler a banda desenhada Adèle Blanc-Sec, de Tardi, sem passar por aí. Um turista japonês de headphones, seguindo o guia de guarda-chuva colorido erguido, nunca conhecerá o Louvre tão bem. Outro dia, decido-me por uma refeição farta, uma baguette, ou uma sofisticada, uma viennoise. Que itinerário para hoje, as galerias de passagem de Louis Aragon, no bairro da Ópera, ou a Contrescarpe de Hemingway? Tempos de emprego farto e oferecido, entrando e despedindo-me, trabalho nas fábricas de sabão da Unilever, docker em cais de camionagem, motorista de levar obrigações a bancos, impressor em gráficas… Não estudo? Sim, intensamente, torno-me parisiense em curtos pares de anos, onde outros precisaram de gerações.
Frequento os mercados de rua, aprendo que um carré du Poitou só se compra a partir de maio e antes de lhe apreciar o gosto comprei um reblochon por causa da sua história de fraude – os camponeses entregavam o primeiro leite aos senhores e da segunda ordenha, feita às escondidas, à noite, inventaram este queijo com gosto a avelãs.
Completei o curso da vida percorrendo as áleas do cemitério Père-Lachaise, sei onde fica o muro dos fuzilados – tal como fiz o jardim-escola no Cemitério Velho de Luanda à procura das minhas raízes. Enfim, quando mais tarde ousei ser jornalista já sabia que não se pergunta a uma mãe que perdeu o filho: «Como se sente?»
[Publicado originalmente na edição de 27 de abril de 2014]