Como dois jovens mudaram uma cidade

Notícias Magazine

A velha que parecia vietnamita começou a ser desenhada no início do verão de há dois anos no Largo 2 de Março, no centro de Ponta Delgada, ilha de São Miguel, nos Açores, paredes-meias (sim, deixem-me usar o cliché, já explico porquê) com a sede do Governo Regional dos Açores. A preto, sobre um muro que era branco e que estava suficientemente degradado para fazer notar a pintura. Antes, ali estava um outro mural, num assomo neo-FLA, recordando os tempos quentes da Frente de Libertação Açoriana. A arte veio redignificar o antigo muro.

Em Santa Clara, na zona ocidental da cidade, as enormes estruturas de cimento que protegem o mar nesta zona baixa começaram a ser povoadas por umas figuras, também de cimen­to, que pareciam descansar enquanto olhavam para o horizon­te. Na Rua de Lisboa, mais uma vez no centro, a fachada lateral de um prédio inteiro – que também os há, mas com as dimen­sões próprias de uma cidade pequena das ilhas – ganhou cores e mais cores num enorme graffito em extensão. Nas fábricas da Calheta desenharam-se cores e formas geométricas nos silos que servem de cartão-de-visita a quem entra na cidade por bai­xo. Na Rua Joaquim Nunes da Silva foi colocado um tapete e to­das as portas dos prédios devolutos ganharam vida. Junto da marginal, num beco próximo da polícia, uma baleia enorme en­gole outra numa parede amarela e tristonha – o beco é tão es­treito que nunca apanha sol.

Quem quiser deslocar-se um pouco mais a norte da cidade poderá visitar a quinta em ruínas onde Vhils – também conheci­do como Alexandre Farto – decorou uma parede de uma torre com a sua técnica de baixo-relevo. O agora internacionalmente conhecido artista – com exposição monográfica no Museu da Eletricidade, em Lisboa – marca, com as suas obras, a urbanida­de da pequena cidade de Ponta Delgada há pelo menos quatro anos. Grátis.

E é assim por toda a cidade – com menos famosas mas não me­nos imaginativas intervenções. Ninguém pode deixar de notá-lo, até porque as obras são mesmo de encher o olho e foram feitas para ser notadas. Há quatro anos que artistas ditos urbanos, de todos os can­tos do mundo, deixam a sua marca nas paredes de Ponta Delgada – eis por que eu queria, há pouco, usar aquele lugar-comum.

Como damos conta nesta semana nas páginas da revista, por estes dias o Festival Walk & Talk invade novamente as ruas de Ponta Delgada. Os artistas andam por ali, pintando paredes e modificando muros. E nunca, nunca maculando uma cidade que é toda brancura e basalto, que é mar e sombra, estreita e comu­nitária. Escolhendo os prédios vazios e as portas de madeira por onde já ninguém passa. Trazendo alegria a uma cidade que é to­da fechada sobre si mesma e só se ilumina quando o verão e o ca­lor permitem.

E tudo isto aconteceu graças a dois jovens – Diana Sousa e Jesse James (nome verdadeiro Moniz). Nenhum deles tinha liga­ções políticas – apenas ideias, imaginação, vontade de fazer e, vá lá, algum sentido pragmático. Nem sequer viviam nos Açores – apenas tinham origem na ilha e a ligação que percorre tantos fi­lhos da açorianidade. Correram ceca e meca, bateram a todas as portas, percorreram todas as capelinhas para arranjar maneira de trazer a Ponta Delgada artistas que, por seu lado, nada cobra­vam – chegava-lhes o prazer de acrescentar algo a estes paraísos terrestres que são os Açores. E, com isso, mudaram uma cidade. Ponta Delgada é desde há quatro anos outra cidade. Ganhou vida tornando-se uma espécie de galeria a céu aberto. Enquanto mui­tos se queixam do que os outros não fazem, a Diana e o Jesse me­teram mãos à obra. Usemos as nossas para aplaudi-los.

Publicado originalmente a 27 de julho de 2014