Aconselhou Maria de Lurdes Pintasilgo a usar cores sóbrias na campanha para a presidência e fez de Vera Lagoa uma mulher loura para as primeiras emissões da RTP. Durante mais de sessenta anos, Odete Cordeiro penteou algumas das mais emblemáticas mulheres da sociedade portuguesa. Atrizes, políticas, escritoras, jornalistas e pintoras encontravam-se naquele salão da rua Garret, em Lisboa.
Quando penteou Maria de Lurdes Pintasilgo pela primeira vez, Odete Cordeiro já sabia o que fazer ao preto retinto que a ex-primeira ministra portuguesa e então candidata a chefe de Estado usava. «O preto dava-lhe um ar pesado», diz a cabeleireira. «Essa cor só fica bem em miúdas de 20 e poucos anos. Numa mulher madura, carrega muito o semblante.» Estavamos em 1985 e para Odete, então com 49 anos, a cor que melhor ficava à «senhora engenheira» era o «castanho médio ou o castanho dourado, para aligeirar o rosto e o estilo, a pender para o clássico».
O convite para tratar do cabelo de Maria de Lurdes Pintasilgo durante a campanha eleitoral para a Presidência da República veio da jornalista Helena Sanches Osório, cliente e amiga de infância de Odete e envolvida na candidatura de Pintasilgo. Odete não pensou duas vezes. Aceitou e pôs logo em prática as suas ideias para melhorar a imagem daquela que poderia vir a ser também a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo do país. Sendo uma cabeleireira com créditos firmados no meio, as suas sugestões eram quase palavras de ordem, nunca postas em causa por Pintasilgo. «Mas não foi tarefa fácil. Não imagina o tempo que o preto demorou a sair. A cor teve que ser muito bem decapada para depois aplicar o castanho.»
Odete não era uma cabeleireira qualquer. Era bastante conhecido o seu talento para os cortes curtos e médios e para os apanhados, o que levava ao número 47 da Rua Garrett, em Lisboa, nomes sonantes da política, da literatura e do jornalismo, do cinema e do teatro. A maior parte, mulheres. Clientes homens eram poucos e «escolhidos a dedo». Era também nessa rua, no coração do velho Chiado, em frente ao salão de Odete e do marido, António, que ficava a Leitaria Garrett, onde paravam «pessoas importantes, sobretudo das artes», e com quem Odete se cruzava todos os dias na hora de beber café ou lanchar. «Vi lá muitas vezes o Vitorino [músico, autor de uma canção com o nome do estabelecimento].» Algumas delas, além de clientes da Leitaria, tornaram-se clientes do salão de Odete.
Além de Maria de Lurdes Pintasilgo, faziam parte da clientela de elite a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, as pintoras Graça Morais e Sofia Areal, a atriz Eunice Munõz, a cronista Vera Lagoa (no tempo em que assinava Maria Armanda Falcão), a obstetra Maria da Purificação Araújo, as jornalistas Maria João Seixas e Diana Andringa e muitas, muitas mais.
O espaço onde Odete trabalhava com o marido, cabeleireiro e seu mestre na arte de cortar cabelos, era «muito distinto, diferente de todos os outros», não apenas pela clientela que o frequentava, mas também pela decoração, assinada pelo cenógrafo, figurinista e decorador francês Lucien Donnat. «As paredes estavam forradas com azulejos da Fábrica de Santana, os espelhos eram ovais e emoldurados em ferro forjado pintado de branco. Os lavatórios eram verdes. Dos lavatórios, honestamente, não gostava muito, mas fiz questão de os manter por respeito. Era uma questão de cultura, de património, de identidade daquele espaço. Faz parte de um tempo.»
Odete tinha 13 anos quando entrou pela primeira vez no Cabeleireiro Amaro, que anos mais tarde viria a ser seu. Foi aí, com aquele que viria a ser seu marido e sócio, que aprendeu tudo o que sabe de cabelos. A única experiência eram três meses como aprendiz num cabeleireiro na Rua Nova da Trindade, onde aprendeu «a pôr ganchinhos». Foi no Cabeleireiro Amaro que se fez profissional, a pentear «as senhoras da elite da capital», a quem tratava por «madades» e «mademoiseles».«Nos anos 50, era assim que tratávamos as clientes.»
Seguiram-se outros tempos, mais conturbados, de mudança, e isso fazia-se notar também nas clientes. Aliás, se há sítios que podem ser o reflexo do que se passa na rua, no país, esse sítio pode muito bem ser o cabeleireiro. Para muitas mulheres, é como se fosse um confessionário. E para as clientes de Odete não era diferente. No seu salão – entretanto batizado Odete e António Cabeleireiros – falou-se de muita coisa, ouviu-se muita coisa. Todos os assuntos, fraturantes ou inócuos, eram comentados. «Muitas desabafavam aspetos da vida pessoal. Outras preferiam falar de trabalho. Outras, dos problemas sociais e de política». Odete, «por razões éticas», habituou-se «a ouvir muito e a calar ainda mais.» E esse princípio nunca o abandonou, nem sequer hoje, quando já não corta cabelos a ninguém. Tem 77 anos, reformou-se há três, e faz questão de guardar para si muitas histórias que ouviu ao longo de seis décadas de profissão.
De todas as mulheres marcantes da sociedade portuguesa que Odete penteou, guarda «um lugar especial na memória e no coração». De Maria de Lurdes Pintasilgo, por exemplo, lembra que era uma mulher «valente, justa, de fortes convicções e muito faladora.» E embora «não ligasse muito à aparência física, tinha os seus gostos como qualquer mulher». Odete, que além de tratar do cabelo de Pintasilgo, também era responsável pela sua imagem, teve que usar de toda a sua diplomacia e capacidade de persuasão para convencer a política a mudar algumas coisas. «Ela adorava cores, sobretudo nas roupas. Mas atendendo ao cargo para o qual estava a candidatar-se, convinha que tivesse uma imagem mais discreta, mais presidencial, clássica. Em relação às cores, ela cedeu, mas quanto ao modelo das roupas não. Ainda lhe sugeri uns conjuntos de saia-casaco Channel, mas ela recusou.» Pintassilgo também gostava de usar acessórios como alfinetes e relógios, o problema é que gostava deles «um bocado vistosos, embora clássicos», o que na televisão, quando aparecia em campanha ou participava em debates, «era pretexto para os espetadores repararem neles em vez de ouvirem o que tinha a dizer Ela abdicava deles, porque sabia que numa mulher, sobretudo uma mulher que pela primeira vez estava a candidatar-se aquele cargo, tudo serve para ser comentado. Mas tinha que aparecer em público sem nada que pudesse desviar as atenções dos espetadores das suas mensagens políticas. Nos homens é diferente, ninguém ia comentar que tinha uma gravata assim e um casaco assado.»
A cabeleireira teve uma convivência igualmente tão estreita com a veterana dos palcos Eunice Munõz. Conheceu-a nos anos 50, quando a atriz entrou no salão para cortar bem curtos os seus longos cabelos castanhos. «Ela era a protagonista da peça Joana D’ Arc, que estava prestes a estrear [no antigo Teatro da Avenida], e foi lá para o António lhe cortar o cabelo. Ele cortou-lho mas a manutenção do corte ficou a meu cargo durante o tempo em que a peça esteve em cartaz.» O trabalho de Odete conquistou a atriz, já então aclamada pela crítica como genial e cujo talento enchia as salas de espetáculo – Odete ainda se lembra da «multidão» que se perfilou pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, desejosa por comprar um bilhete para ver Eunice no papel de Joana D’ Arc. Depois da peça, Odete ganhou mais uma cliente.
Por essa altura, em 1955, era já assídua no salão de Odete a primeira locutora da RTP, Maria Armanda Pires Falcão (mais tarde Vera Lagoa), quando a televisão portuguesa iniciou as emissões experimentais. Foi Odete quem a pôs loira. Não porque Maria Amanda não gostasse de ser morena, mas porque foi uma imposição do canal. « Eles só queriam loiras, não sei porquê. Eu andei de volta do cabelo dela um sábado e um domingo inteiros para lhe tirar a cor que ela usava, um preto muito preto. O que ela sofreu, com o super descolorante que lhe apliquei. Até ganhou feridas. Os produtos naquela altura eram mais agressivos.»
Com tantas mulheres a entrar e a sair no salão, acontecia juntarem-se às três, quatro e cinco. Odete não entra em pormenores, recusa dizer quem se cruzava com quem e que conversas alimentavam. Apenas diz que «apesar de algumas serem de quadrantes políticos opostos, sempre respeitaram as ideias umas das outras». Mesmo quando os discursos eram um pouco mais inflamados. Pílula, aborto, homosexualidade, guerra colonial, igreja, pátria, família… na casa profissional de Odete não havia assuntos tabu e todas as mulheres que a frequentavam, fossem feministas, ativistas políticas ou mais conservadoras, não se coibiam de comentar. A quem Odete nunca ouviu levantar a voz, mesmo se a conversa estivesse animada, foi à poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen. «Era uma senhora muito fina. Por vezes falava sobre a Grécia e de viagens que tinha feito. A Grécia antiga e o mar eram temas que lhe interessavam bastante. Deixou de ir ao salão quando adoeceu.»
A relação que manteve com as clientes ao longo de 61 anos de trabalho fez dela uma mulher diferente. «Tive a sorte de conhecer e de criar uma amizade muito sincera com grandes senhoras, de uma cultura e inteligência esmagadoras», diz Odete. «Eu bebi um bocadinho dessa cultura de cada uma delas e estou muito grata por isso. Comecei a trabalhar muito cedo. Saí da escola com a quarta classe, não sabia nada da vida. Pode imaginar o quão fascinada fiquei à medida que ia conhecendo mulheres desta grandeza. Ter convivido de uma maneira tão próxima com elas permitiu-me aprender bastante. A ter consciência social. A olhar para a política com outros olhos. A ser interventiva em vez de meramente observadora do que se passa à minha volta. Tenho pena de não ter mais cultura, mas tenho alguma e a que tenho a elas o devo.»