32 *

Notícias Magazine

Há algo de errado aqui. Parece não haver forma de parar a mortandade. Assim como arrepia pensar nos casos que, não tendo tido tão trágico desfecho, se vão encaminhando para lá, encobertos por uma lei tácita que dita que na vida de um casal não se deve meter a colher e que perpetua uma desvinculação da sociedade em relação a casos de violência doméstica.

A violência atinge diferentes graus e mascara-se de diversas formas. Desde a mais facilmente detectável, visível a olho nu e audível aos vizinhos mais próximos, até à mais sub-reptícia, que não deixa que o parceiro seja a pessoa que é em toda a sua pleni­tude e liberdade, que o humilha e rebaixa, que o puxa para baixo em vez de o ajudar a elevar-se.

Não utilizei qualquer género para descrever agressor e vítima, pois que os há de ambos os sexos. Contudo, nos últimos meses, os ca­sos que têm vindo a público têm como vítima uma mulher e como agressor um homem. Se todos sabemos que a violência doméstica deriva essencialmente do desrespeito pelo outro e de um desequilí­brio emocional e/ou psicológico, pelo que tanto mulheres como homens poderão vir a ser agressores, a verdade é que, para além de tudo isto, há qualquer coisa que estará a desequilibrar a balança na contagem das vítimas e agressores.

Será porventura a crise económica que se tem vindo a sentir e que faz que as dificuldades sejam amplificadas ao seu expoente máximo, levando a actos dementes. Mas, para além disso, ou por bai­xo dessa «desculpa», deve estar outra coisa. Algo que até agora esta­va adormecido, latente ou em hibernação. Algo que não se via, nem se sentia, mas que se podia prever caso se pensasse no assunto com maior ponderação.

Parece-me que vivemos numa sociedade que ainda não con­seguiu resolver os inúmeros fantasmas que carrega em relação ao sexo e à condição feminina. Apesar de nos considerarmos desenvol­vidos, modernos, ainda podemos observar que, de uma maneira geral, agimos de forma profundamente conservadora. Ou, pelo me­nos, os nossos serviços e instituições ajudam-me a pensar assim, quando relembro casos tristemente célebres como o caso da pacien­te grávida que foi violada por um médico, tendo o colectivo de juízes decidido suspender a pena, uma vez que, no seu entender, a violên­cia exercida não foi suficiente para que se pudesse considerar aque­le acto como violação, ou, mais recentemente, no caso da paciente que requeria indemnização depois de uma cirurgia que lhe havia retirado qualidade de vida, com dores crónicas e impossibilidade de manter uma vida sexual normal e que ouviu, na sentença que lhe foi dirigida, a atenuação do montante indemnizatório, porque, alegadamente, aos 50 anos, a vida sexual não tem a importância que tem quando se é mais novo, ligando directamente a possibilidade reprodutiva à manutenção de uma vida sexual pertinente.

Poderá parecer descabido relacionar estes casos com os casos de mulheres que morrem às mãos dos seus «companheiros». Mas, na minha perspectiva, o que os primeiros demonstram é que ainda sobrevive uma incapacidade de alguns sectores e camadas da população de lidar com a emancipação feminina e com a persecu­ção e prossecução de direitos básicos e inalienáveis das mesmas,como o direito à liberdade e à igualdade de oportunidades e de direi­tos (incluindo aqui o direito a uma vida sexual plena e à liberdade de a perseguir sem quaisquer represálias).

Urge que se debata e pense este problema de forma séria e ponderada, para que se pare de passar às sucessivas gerações esta incapacidade de aceitação e de remodelação das relações homem–mulher. E urge que, enquanto colectivo, ajamos contra comporta­mentos e acções que perpetuem uma triste realidade.

* número de mulheres assassinadas em contexto de conjugalidade ou relações familiares, no ano de 2014, segundo a APAV.

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia

[Publicado originalmente na edição de 16 de novembro de 2014]