São doidos por festivais e colecionam tudo

Fãs aficionados de música, fiéis festivaleiros, guardam dezenas de souvenirs dos dias passados em frente aos palcos a ver concertos. José Cardoso, Teresa Magalhães, Francisco Ramalhosa e Fábio Pais têm autênticas relíquias: copos, bilhetes, t-shirts, alinhamentos das bandas, baquetas, cartazes, peluches, insufláveis. Alguns preenchem paredes com memórias emolduradas, outros têm tudo em caixas.

O alinhamento do histórico primeiro concerto dos Arcade Fire em Portugal, ainda em início da carreira, naquele final de tarde de 2005, na praia fluvial do Taboão, Paredes de Coura, rabiscado no verso de um bilhete de avião, está pendurado numa parede cheia. Se prestarmos atenção, também lá mora o alinhamento do concerto de Paul McCartney na primeira edição do Rock in Rio Lisboa, 2004. Ou de Rage Against the Machine no Nos Alive de 2008. É um autêntico mural de memórias de festivais emolduradas, onde estão ainda baquetas, de Nick Cave ou de Suede, autógrafos, fotografias. José Cardoso abre as portas de casa, em Ovar, ao lado da mulher e da filha, que o acompanham na loucura, e basta subir dois lanços de escadas para dar de caras com a “sala da música”, como lhe chama, espécie de santuário onde guarda tudo o que foi colecionando até agora.

José Cardoso na sua “sala da música”, onde tem uma parede inteira com alinhamentos de concertos, fotos ou baquetas emolduradas
(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

Tem 47 anos, desde miúdo que segue a cena musical. “Desde o tempo da antiga XFM, uma rádio de culto”, comenta. Na adolescência, era José músico numa banda filarmónica local, juntava todos os escudos que recebia para comprar discos – mesmo antes de ter a primeira aparelhagem para os ouvir – e para ir a festivais. Foi nessa altura que ganhou o vício de, no final de cada concerto, se dirigir ao palco ou à régie para pedir o alinhamento. “Tenho algumas dezenas ou centenas de alinhamentos de concertos a que a assisti. Alguns deles autografados.” E não, não lhe peçam para eleger a banda favorita, são várias.

(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

É final de tarde, a luz baixa do sol a invadir a sala, está junto ao móvel em madeira que vai até ao teto, onde guarda milhares de discos, estima que são quatro mil, a percorrer os ficheiros da memória. Sabe que vai ao festival Paredes de Coura desde 1999 ininterruptamente. Como também vai ao Primavera Sound, no Porto, desde a primeira edição. São esses os festivais que nunca falhou. Mas de todos, todos mesmo, guarda objetos. Na “sala da música”, além da parede carregada de molduras, há pulseiras, bilhetes, copos, livros, uma garrafa de vinho comemorativa dos 30 anos de Paredes de Coura, t-shirts também (algumas transformaram-se em capas de almofadas), cartazes, flyers, palhetas (como a de Steve Albini, falecido há dias, que apanhou no Primavera Sound do ano passado), uma cábula com palavras em português que os britânicos Bauhaus usaram num concerto em Coura, postais, canecas, caixas de edições especiais dos Beatles, dos Smiths e de tantas outras bandas, até uma bola insuflável dos Crystal Fighters que trouxe de Vilar de Mouros, o mais antigo festival do país.

(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

“Sempre tive o bichinho do colecionismo. Ainda tenho recortes do jornal “Blitz”, onde lia as críticas aos discos quando era miúdo. E todas as cartas que escrevi às bandas nos anos 1990, algumas respondiam-me”, lembra. A cada festival, há um ritual que não falha, vai sempre ao stand do merchandising. “Isso é certo, vou aos festivais pela música, pelos cartazes, e compro sempre alguma coisa que me faz lembrar cada um deles.” Nunca fez as contas ao dinheiro que já gastou, ao tanto que vale o museu que criou só para si. Mas só neste ano já vai em mais de 300 euros. O roteiro está desenhado: tem bilhetes para o Primavera Sound, para Paredes de Coura, para o Kalorama e para o dia 11 de julho do Nos Alive, quando atuam os Arcade Fire. Diz, em jeito de brincadeira, ser o único português que assistiu a todos os concertos da banda em Portugal, dez no total. Talvez seja verdade. Este ano será a 11.ª vez.

O amor ao Rock in Rio, o mítico Vilar de Mouros

A época dos festivais está aí à porta, o North Music Festival, no Parque de Serralves, no Porto, vai abrir a temporada já no próximo dia 24 de maio. Logo a seguir vêm o Primavera Sound e o Rock in Rio. A música vai encher recintos carregados de gente e de palcos até ao final do verão. Pelo meio, há uma febre que assoma os fãs de corpo inteiro, os mais fiéis festivaleiros, um fenómeno de colecionismo de quem guarda todo o tipo de souvenirs e merchandising. Tanto que, por exemplo, o festival Paredes de Coura recebe com frequências pedidos de pulseiras, camisolas ou cartazes de edições anteriores.

Teresa Magalhães era uma menina, teria aí uns dez anos, quando foi pela primeira vez ao Rock in Rio Lisboa. Estávamos em 2010, Miley Cyrus era então uma estrela da Disney, a famosa Hannah Montana, Teresa não falhou o concerto, o primeiro da sua vida. “A partir daí fui sempre. A minha irmã trabalhava no Rock in Rio, acabei por criar uma ligação afetiva com o festival.”

Teresa Magalhães, que desde miúda coleciona objetos do Rock in Rio
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

E guarda tudo, tudo, tudo. Até vai a outros festivais, ao EDP Cool Jazz, ao Sudoeste, ao Nos Alive, mas só o RIR merece uma caixa carregada de recordações no quarto, em casa. “Não sei explicar porquê, mas só coleciono objetos do Rock in Rio. Tenho todos os bilhetes, todas as t-shirts com o cartaz de cada edição nas costas, copos, o sofá da Vodafone, o insuflável da Havaiana gigante, os chapéus da Galp, porta-chaves, pins, fitas.” Tem 25 anos, no entretanto também foi duas vezes ao RIR Brasil, sempre teve um fascínio por grandes espetáculos, cresceu a ver vídeos do Live Aid à conta do pai. E talvez só a febre pelo futebol e pelo Benfica se assemelhe ao amor que tem ao RIR. Fez a sua primeira tatuagem no festival, em Lisboa. Mais: já em adulta, acabou mesmo a trabalhar no RIR, hoje gere uma área do marketing.

Teresa carregou a caixa de memórias para o Parque Tejo, a nova casa do Rock in Rio, que está a assinalar 20 anos em Portugal, para mostrar o tanto que já acumulou. Tem até um casaco personalizado, à medida. E olhando ao merchandising, fonte da organização assegura que “o produto mais vendido de sempre é a t-shirt ‘Eu fui’, que apresenta os nomes dos cabeças de cartaz, muda a cada edição e é considerada um item de colecionador”.

(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Sobre itens de colecionador, Francisco Ramalhosa tem coisas a dizer. Viajemos até Vilar de Mouros, a aldeia minhota, ao festival cujas origens remontam aos anos 1960. O Woodstock português que, em 1971, desafiou a moral do regime, se fez em plena ditadura e marcou um momento histórico ao juntar milhares de pessoas em torno da música, de Elton John ou de Amália Rodrigues, inédito em Portugal. Aos 70 anos, Francisco nunca falhou uma edição. “Antes nem se sabia o que era um festival, não havia o que há agora. Mas fui à primeira edição e desde então que vou sempre.” Pelo caminho foi guardando tudo o que apanha de Vilar de Mouros, sobretudo cartazes que expõe todos os anos no seu bar, o After Eight, em Caminha, pouco antes dos dias do festival. São relíquias de décadas passadas, que atraem até estrangeiros fascinados por tamanha coleção. Os próprios artistas também. “Uma vez, foi lá ao bar o Peter Murphy assinar-me um cartaz”, conta.

Francisco Ramalhosa, no seu bar, After Eight, onde expõe em agosto cartazes e até placas do festival Vilar de Mouros de há décadas
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Enquanto não chega agosto, os cartazes estão guardados na cave de casa. “Só tenho uma regra, todos os anos tenho de conseguir o cartaz. Depois, não sei quantas coisas tenho. Bilhetes, t-shirts, copos, placas a anunciar o caminho para o festival. Gosto de Vilar de Mouros, desde miúdo que vou, acompanhou-me a vida toda, gosto da Natureza, dos banhos no rio, da música. É por gosto, não é obsessão.” De cada vez que a música aterra na aldeia, arranja alguém para lhe tomar conta do bar, o filho e a mulher ajudam, se for preciso também fecha as portas para poder ir ao festival. “Isto não cansa, é como os Rolling Stones, é sempre a abrir.” Mas tem uma edição favorita? Todas. Ou melhor, “talvez aquelas do início tenham sido mais marcantes”. O ano de 1982, com os U2, por exemplo. E a edição de 2001, com Neil Young num memorável concerto à chuva.

(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Vilar de Mouros, de tão antigo, é fértil em colecionadores, há quem tenha o primeiro bilhete, os primeiros recortes de notícias. “E tudo o que é merchandising esgota, normalmente. Hoodies, t-shirts, tote bags, canecas. Além de que as pessoas levam os copos para casa como recordação”, realça Paulo Ventura, porta-voz do festival.

No meio da coleção, um sapo que virou mascote

Mas o fenómeno do colecionismo para muitos fãs não se limita a um só festival. É sagrado: todos os anos, Fábio Pais tira férias só para isto. “É o meu único vício. Vou sempre ao Primavera Sound, a Paredes de Coura, o meu favorito, ao Rock in Rio, ao Nos Alive, mais recentemente também a Vilar de Mouros. Este ano ainda vou ao Bons Sons e fui ao Tremor.” Tem 32 anos, gosta da confusão de andar de palco em palco, de encontrar amigos, de comprar um bilhete que lhe permite ver vários artistas. De todos vai acumulando objetos. “A primeira coisa que procuro quando chego a um festival é o stand do merchandising. Costumo comprar pelo menos uma t-shirt, sobretudo se tiver o cartaz dessa edição. Muitas vezes, os artistas até estão no stand a falar com os fãs.”

Fábio Pais com o sapo “Mickey the Frog” e tudo o resto que foi acumulando
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Guarda dezenas de pulseiras, copos, toalhas de piquenique do Primavera Sound, golas, sacos, casacos. Conseguiu a primeira baqueta da coleção no ano passado, no concerto de Interpol no Lisboa Ao Vivo. Alinhamentos de bandas tem para cima de 100, alguns emoldurados na parede do quarto, em Lisboa. Talvez o objeto mais icónico seja o sapo de peluche que, há uns anos, “o Rock in Rio oferecia aos primeiros fãs a chegar, na abertura de portas”. Não, Fábio não foi um deles, mas em 2018 um grupo deixou o sapo para trás, ele tentou entregar-lhes, disseram-lhe para ficar com o peluche e virou mascote do grupo de amigos. Chama-se Mickey the Frog, tem página de Instagram, Fábio leva-o a todos os festivais e concertos desde então. “Levanto o sapo e os amigos sabem logo onde estou.” Mickey até já subiu ao palco secundário do Nos Alive, num concerto de Chvrches, em que a vocalista Lauren Mayberry reparou nele e o pediu emprestado para uma música. “Na verdade, tudo isto são coisas que acumulo, algumas em caixas, outras vou usando, que têm muito valor emocional. É uma memória que me lembra aquele festival, aquele concerto”, especifica.