Os 50 anos de carreira de Alfredo Cunha, o fotógrafo de Abril

Alfredo Cunha, o lendário repórter fotográfico, tem 20 anos outra vez. É madrugada, a noite passa de 24 para 25 de abril, estamos em 1974, vamos viver uma revolução. Mas nem por sonhos o jovem fotógrafo, que ali ainda não era uma lenda, imagina o que lhe vai acontecer. E acontece tudo, tudo em todo o lado, tudo ao mesmo tempo, até deflagrar num encontro cósmico: vai ficar cara a cara com Salgueiro Maia, o melancólico capitão que a sua fotografia imortalizou numa manhã há 50 anos. A NM desfia com ele a linha imemorial do tempo e tudo torna acontecer outra vez. Mas, afinal, quantos dias durou aquele dia?

Alfredo, que tinha 20 anos e nessa hora revolvia-se impremeditável na cama da sua casa na Amadora, ouviu outra música na rádio de que gostou. A música era nova e misteriosa, parecia um tumulto a decorrer lentamente, começava e acabava com chuva e ameaças e falava de coisas incalculáveis, imprevisíveis, de coisas repentinosas na vida, e dizia, pareceu-lhe, a voz dizia-lhe que ele e nós todos somos os cavaleiros, que estamos sozinhos como cães sem um osso, e que está a decorrer uma tempestade. Teve a sensação de ficar hipnotizado.

Enquanto mudava de estação no rádio (ao esticar o braço deitou abaixo da cama a revista Life que trazia na capa uma foto a preto e branco de W. Eugene Smith que o tinha perturbado muito), bamboleava a cabeça e repetia para si a frase da voz hipnotista que acabava de ouvir pela primeira vez na vida, “Riders on the storm”, e continuou a murmurá-la enquanto percorria a estática até parar na Rádio Renascença. O som da tempestade dos Doors – aquela canção seria a última, Jim Morrison já tinha morrido há três anos, mas o disco só agora chegava cá -, funde-se na sua cabeça com as chispas das passadas compassadas na gravilha da canção que estava a começar. Ouve-a toda. Emociona-se sempre naquela parte do coro e do tremolo das palavras comunais, igualdade, fraternidade, as palavras puras e determinadas, a liberdade que Zeca Afonso ordena e jura na canção. Depois haveria de ir à janela, não se passava nada na Amadora, o céu estava apagado, parecia só que ia chover, baixou o som do rádio, mas deixou-o ligado, mudando para a RCP. Depois alisou a Life e afagou-a, apagou a luz, e embalado na modorra da “Grândola vila morena” que ecoava como penas na almofada amena, foi incerta a hora a que adormeceu.

Sonhou, sonha sempre, mas não se lembra do que sonhou.

Acordou num supetão, como quem acorda de repente totalmente e já dá por si na cama estática sentado. São 4.25 horas da manhã de 25 de abril de 1974, leva a mão à roda do rádio e ouve a voz grave recitar as palavras irreversíveis numa perfeita pronunciação: “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas”.

O que aconteceu a seguir, como num turbilhão que floriu de repente, já Alfredo está de pé, já vestiu a Nikon F por cima da t-shirt preta, já saiu, já corre pela Falagueira, é tão neorrealista de noite a Falagueira, já entrou e saiu do comboio noutra dimensão, foi confuso e rápido e meteu muito vento. Cheio de ânsias, abruptamente, Alfredo já está em Lisboa, já voa pelo Rossio afoito, o sol está quase a romper o chumbo, há chaimites na Baixa, que irreal, e soldados, soldados a formigar, estão todos blindados, os rostos mudos como os carros parados, e uma tensão imprecisa e estranha percorre tudo pelo ar enquanto Alfredo, a ferver de adrenalina, continua a correr na subida tendente do Bairro Alto e só há de parar no cimo do “O Século”, o jornal onde há um ano começara a trabalhar.

(Foto: Alfredo Cunha/DR)

Com os bofes e a Nikon F de fora já erguida no ar, Alfredo, que ainda há pouco mais de uma hora exclamava alto sozinho na outra margem do seu quarto “tenho que ir já para o jornal!”, percorre agora o enxame da redação, vai empapado em suor, à procura do chefe redatorial. Está tudo em desordem, há risos e gritos desfechados no ar, disparam-se ordens e contradições, ninguém sabe exatamente o que se está a passar. É uma contraposição?, é um golpe popular?, é uma revolução militar?, quem é a resistência?, e quem é a autoridade? Ninguém sabe com exatidão se aquilo é uma guerra que está ali aos pés deles prestes a estalar.

E subitamente, por cima daquele tumulto e dos pontos de interrogação, Alfredo ouve o seu apelido gritado três vezes pelo chefe de redação. “Ó Cunha!”, brada Mário Zambujal, e o homem que costumadamente é suave e brando, vibra agora muito rúbeo como um polvo que se eletrizou. A ordem é esbracejada: “Cunha, já para o Terreiro do Paço!”. E Cunha, que está prestes a ser para sempre o lendário repórter fotográfico Alfredo Cunha, mas que ainda não é, nem sonha sequer que o vai ser, agarra uma mãozada de rolos fotográficos, enche o saco preto que põe a tiracolo e sai para a rua a chispar, atrás da voz do Mário Contumélias, o redator de quem logo a seguir se vai perder na enxurrada da revolução.

São 6 e pouco da manhã, o céu é o mesmo manto metálico denso, só clareou ligeiramente, e começa a chuviscar. Dali a nada as ruas serão rios de gente, gente impermeável que não pára de afluir, primeiro timidamente, como quem apalpa inexatamente, sem saber ainda o que aquilo é ou o será, depois mais francamente, ouve-se o vozeio a inchar, espicham-se os sorrisos. Chega cada vez mais gente, achega-se aos benignos soldados armados, ombros lado a lado, o povo e os militares, todo o tipo de classes de gente desagua na rua irmanada, em todas as ruas e cruzamentos, vêm todos de todo o lado ao mesmo tempo, braços erguidos no ar, muitos homens, depois mais mulheres, hão de vir também crianças e flores, a revolução será um jardim simétrico de paz, e todas as palavras e toda a gente correm ali libertadas da corrente.

Afogueado, a caminhar com a cara colada ao visor da Nikon F, Alfredo Cunha dispara em todas as direções, já passaram três horas e ainda não parou de disparar, um, dois, três, quatro rolos, cada um de 36 fotografias, cinco, seis, sete, dezasseis rolos, não sabe, não os está a contar, fotografa que se desunha, está em todo o lado, é ubíquo, é uma rajada que não pretende parar.

(Foto: Alfredo Cunha/DR)

Vai ser agora, ali no Largo do Carmo efervescido, são 9 e picos da manhã do dia 25 de Abril de 1974, a revolução ainda é uma criança, e Alfredo Cunha vai dar por si, intrépido e insonte, cara a cara com Salgueiro Maia, o capitão da revolução.

Nenhum dos dois o sabia, nem o fotógrafo nem o fotografado, mas foi naquele clique, o enquadramento a meio corpo, a cara benévola e desarmada, a misteriosa humildade do militar, e foi aquele instante decisivo, irradiado de melancolia, uma postura que parecia desusada numa plena revolução, que espoletou a História e depois a glória – e a lenda acabava ali de começar.

Seguiu-se depois um breve diálogo entre os dois, mas a conversa pareceu em código.

O capitão já estava a seguir o fotógrafo há uns minutos com o olhar, via-o a rondar, curvado e suspenso, os passos leves, precauciosos, meio escondido, e via que ele se chegava progressivamente a si. Quando já estava no alcance calmo da sua voz, e perto da barreira que os separava, deixou que ele desse o último clique, e interpelou-o:

– O que está aqui a fazer?

O fotógrafo, parecendo-lhe claro e óbvio que estava a fotografar, sem querer ser descortês, não respondeu à pergunta. Respondeu-lhe à próxima, antes que ele a fizesse.

– Sou do Século.

O capitão anuiu e impávido tornou:

– E de que lado está: dos deste lado ou dos do outro?

(Foto: Alfredo Cunha/DR)

Pensando que a pergunta tinha rasteira, o fotógrafo não soube bem nem imediatamente o que dizer. Olhou para os dois lados, mexeu nervosamente na máquina que segurava com as duas mãos, fingindo um interesse urgente nos seus botões, e depois respondeu, levando à letra a pergunta figurada do interlocutor:

– Estou aqui deste lado a fotografar.

Vendo que o sorriso não lhe desvanecia, o capitão deixou correr mais uns segundos de silêncio, coisa que ao fotógrafo pareceu a eternidade, e depois, abrindo o braço num gesto em arco, disse num tom de voz venial:

– Passe lá então para este lado, assim já não tem que se esconder.

O fotógrafo passou, disse o seu nome e o apelido e estendeu a mão ao capitão, enquanto lhe ocorria na cabeça, sem saber bem porquê, aquela frase do fim do “Casablanca”, do princípio de uma bela amizade.

O dia durava interminavelmente e Alfredo, que ali já era Alfredo Cunha, já não era o fotógrafo estagiário que chegara esbaforido às 6 da manhã, continuava a expelir fotografias da sua Nikon F sem parar, a apanhar tudo o que mexe. Já tinha ido e voltado duas vezes à redação, entrava, desenrolava o filme, punha-se presto a revelar, tudo muito rápido na escuridão, e queria mostrar logo as fotos, ainda elas vinham da banheira a pingar. Depois saia e repetia a correria. Não era ainda tempo de parar, a revolução continuava a acontecer, o Século teria naquele dia cinco edições especiais, e expandia-se a alegria, franqueada, escorria agora em todo o lado, as caras, os olhos, os braços vitoriosos, tudo parecia raiar.

– Fiz 40 rolos! São 36 imagens por cada rolo! São 1440 fotografias!

É agora que Alfredo Cunha diz isto, e agora transcorreram 50 anos. Pelas suas mãos de ferro já passaram Ramalho Eanes, depois passou Mário Soares, foi o fotógrafo presidencial oficial dos dois, já passou pela ANOP, a agência onde chegou como uma lenda, já passou pela Lusa, já esteve no Público, o mito sempre a aumentar, esteve no JN, já é um freelancer outra vez, já tem 70 anos, mas uma vez jornalista, para sempre jornalista.

Esse “dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, e livres habitamos a substância do tempo”, não durou, como informava Sophia, apenas um exato dia. Durou sete dias seguidos até ao 1.º de Maio, pelo menos, um dia tão longo que foi da germinação ao brotamento numa só espantada eclosão, um dia, pelo mais, vivido num só estremeção, um dia todo exaltado em que o único estouro que se ouviu foi a alegria em coro a crepitar.

– É a impressão que tenho hoje, 50 anos depois, tudo aquilo foi um dia contínuo que nunca mais acabou.

Alfredo Cunha pronuncia isto a vaguear um sorriso no olhar, a tentar explicar que o tempo se colou todo a todos eles e os levou, embrulhados para sempre na transcursão, a viver aqueles dias todos inteiros de uma vez só. E Cunha rumina, não se lembra de comer, não se lembra de se deitar nem de dormir, não se lembra sequer de entrar e sair de cada sítio, ele que estava naqueles dias em todo o lado continuamente, como se fosse telecinético. Em certo sentido, é como se Alfredo Cunha tivesse ficado para sempre dentro do inédito vórtex daquela quinta-feira ilimitada, e tudo continuasse a revolver dentro e fora do seu coração.

(Foto: Alfredo Cunha/DR)

– E nem folguei! Foi sempre a batalhar! Acho que durante dois meses a seguir àquele dia, não folguei um único dia só que fosse. Tinha 20 anos, havia de querer folgar para quê?!

Agora Alfredo Cunha está sentado como Johnny Cash, vestido de preto perenal, ali é o estúdio da casa dele em Vila Verde, lá fora agora chuvisca, o céu é de prata imprecisa e fria – Olha, chuvisca como naquele dia… – e a janela risca-se reticenciosa de agulhas de metal.

À frente, o ecrã de cristal do seu Mac reflete-lhe a cara, é uma cara de tranquilidade flamante, de quem já fez tudo, mas de quem quer continuar a fazer tudo outra vez até ao fim, e ele acabou de fazer desfilar as imagens de um novo filme acabado de fazer e que ainda ninguém viu. É um filme feito de todas aquelas fotos, glorioso no seu preto e branco, foi montado em três partes por Miguel Brugo, é um filme mudo emocional, tem música de Rodrigo Leão original, haveremos de vê-lo este ano, mais à frente, nas celebrações oficiais, vai chamar-se também “25 de abril de 1974, quinta-feira”.

O cão de Alfredo Cunha passa no jardim devagar, é um cão gigante, chama-se Dois, é um pastor alemão claro que dilatou, é muito velho, já só quer é manzanzar, e o fotógrafo sorri:

– Olha, não sou eu o mais velho, o cão é mais velho do que eu, se contar os anos dele em anos humanos, claro, eu tenho 70, o cão já fez 84…

E depois Alfredo Cunha sorri outra vez, mas põe-se logo muito sério, que é a sua cara mais habitual.

Levanta-se da secretária, procura algo no caos laboriosamente ordenado do seu estúdio e ergue um grosso livro. É um imenso novo livro, o livro dos livros da revolução, mais de 400 páginas, uma coisa colossal, edição da Tinta da China, tem textos de Carlos Matos Gomes, de Luís Pedro Nunes, de Vicente Jorge Silva, de Adelino Gomes, de Fernando Rosas e de mais imemoriais, é um livro sumular, e tem uma capa de Vhils em que o artista plástico transforma a foto de Salgueiro Maia daquela manhã, e transverte o homem num novo ícone. O livro vai ser apresentado no dia 24, na sede lisboeta da CPLP.

Para quem não conhecer Alfredo Cunha, há uma exposição sua que ainda não fechou e é o batismo ideal. É um best of dos seus 50 anos, “Work in progress”, está patente até ao final do mês na Galeria da Leica, no Porto, e a marca das máquinas fotográficas mais suaves do Mundo também faz agora 50 anos que cá chegou,

Na parede do estúdio atrás de Alfredo Cunha vai um plácido pinguim a passar num quadro de perfil, podia ser um pinguim pintado por Emily Young, um pinguim da orquestra do café avant-gard de Simon Jeffes, é um pinguim fabuloso, ali muito utopista, e das outras paredes do estúdio, onde ainda mantém o quarto escuro da banheira e dos químicos das antigas revelações, jorra, como na casa toda, como um museu que pulsa em modo mnemónico vivo, uma cacofonia de fotos, quadros e comendas, como aquela da Ordem do Infante Dom Henrique que amarelece meritosa, a anunciar que se “concede a Alfredo de Oliveira Coelho da Cunha as honras e o direito ao uso das insígnias dadas na Chancelaria das Ordens Honoríficas Portuguesas, em 13 de fevereiro de 1996, pelo chanceler Gonçalo Ribeiro Telles”.

– Sabias que eu sonho a cores? Eu não sabia, nunca tinha pensado nisso, só descobri há pouco tempo. E foi por um pormenor: estava a sonhar e dentro do sonho havia mais pessoas, e eu mostrava-lhes umas fotos, e depois alguém dizia que as fotos eram a preto e branco. Espantei-me. Olha, é bem reparado, pensei eu ainda a sonhar, mas se as fotos são a preto e branco é porque à nossa volta tudo é colorido. E foi assim que descobri que sonhava a cores.

(Foto: Alfredo Cunha/DR)

Sonha sempre que dorme, Alfredo Cunha, desde sempre, e pelo que diz, é bem capaz de ter o poder da hipnopedia, que é a arte de dominar a aprendizagem induzida durante o sono.

– São os sonhos, resolvo os meus problemas enquanto estou a sonhar. Muitas vezes não me lembro deles, ninguém se lembra, mas há sempre um flash, um ou dois, que consigo apanhar. É vital, nunca ninguém devia deixar de sonhar.