O lado feminino da maçonaria portuguesa

O Grande Oriente Lusitano, a mais antiga obediência maçónica portuguesa, está agora a debater a entrada de mulheres. A discussão do tema tem décadas, é um tabu que ainda não deixou de o ser e que se arrasta dentro da organização a nível internacional. Mas, mesmo sendo a maçonaria uma instituição historicamente masculina, a verdade é que elas sempre estiveram presentes. Até a lutar pela República e pela liberdade.

Estávamos na viragem do milénio, há coisa de duas décadas, quando Odete Isabel, feminista, acérrima defensora da igualdade de direitos, mulher de Abril, bateu à porta da maçonaria. Sim, da maçonaria. Influenciada que estava pela força do discurso do amigo António Arnaut, que foi um conhecido maçom, advogado e político português, e também por duas amigas de Coimbra. Era o ano 2000 e Odete Isabel entrava assim na Grande Loja Feminina de Portugal, a única obediência maçónica exclusivamente feminina no nosso país, de onde nunca mais haveria de sair, é hoje grã-mestra pela segunda vez, o grau mais alto. “Tinha 60 anos na altura e queria experimentar, saber se me dava bem na maçonaria e abriram-me a porta”, lembra. Mas esta história começa muito antes, é a própria Odete Isabel, hoje com 83 anos, que faz a ressalva. É preciso rebobinar à infância para lhe entender os meandros. Assim seja.

Cresceu durante o Estado Novo na Mealhada e a professora primária convencera o pai a deixá-la seguir os estudos. Sempre quis ser cirurgiã, mas logo lhe fizeram ver que isso não era profissão de mulher, que as mulheres não têm mãos para operar, sinal dos tempos. Acabou a licenciar-se em Farmácia, estudou no Porto, e já trabalhava nos serviços farmacêuticos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra no 25 de Abril de 1974. Odete Isabel atravessou a data histórica carregada de esperança e logo depois quis candidatar-se à Câmara da Mealhada, desafiada por um amigo. Ainda lhe disseram “para deixar a política para os homens”, mas é mulher de fibra, destemida por natureza. É apontada como a primeira mulher eleita presidente de câmara em Portugal, nas autárquicas de 1976, uma das Cinco Magníficas que nesse ano ousaram desafiar o poder masculino, e que foram eleitas. Este enquadramento é importante, aponta Odete Isabel, para explicar o encontro com a maçonaria. “O 25 de Abril fez-me florescer, cresci muito. E, mais tarde, a maçonaria deu-me espaço para pensar livremente, trouxe-me esperança de uma sociedade mais igualitária. Só que ainda há muito preconceito e ignorância.”

Já lá vamos, ao preconceito, à ignorância. O tema das mulheres na maçonaria, que é historicamente uma instituição masculina, é um debate de longas décadas, um tabu que ainda não deixou de o ser, uma discussão interna que se arrasta até aos dias de hoje, pese embora a mulher tenha estado sempre presente na maçonaria (ainda que tantas vezes de forma clandestina e inusitada, acontecia mulheres serem iniciadas maçonas por terem espiado cerimónias maçónicas de homens, só para proteger os segredos das lojas).

“A maçonaria esteve à frente do seu tempo em muitos aspetos, mas não em relação às mulheres”, critica sem rodeios Odete Isabel. O Grande Oriente Lusitano (GOL), fundado em 1802, que existe ininterruptamente desde então, a mais antiga obediência maçónica de Portugal, obviamente masculina, está agora a discutir o assunto. Depois de vários membros reclamarem a modernização da organização, o GOL começou por fazer uma auscultação às 103 lojas do país (tem lojas em todos os distritos) que compõem a obediência, a ouvir os maçons sobre a iniciação de mulheres e a maioria mostrou-se favorável.

Mas este foi só um primeiro passo, o tema tem agora de ser discutido na Grande Dieta, espécie de parlamento maçónico do GOL, que reúne periodicamente no Palácio Maçónico, no Bairro Alto, em Lisboa. Aí estão em média dois representantes de cada loja, que irão apresentar propostas e decidir os moldes em que a entrada das mulheres poderá acontecer. Em entrevista à Lusa, Fernando Cabecinha, grão-mestre do GOL, explicou que, “neste momento, há uma vontade maioritária do povo maçónico no sentido de que o GOL seja uma obediência onde trabalham lojas masculinas, femininas ou mistas”. Mas o processo é delicado, exige mudar procedimentos, talvez até alterar a constituição maçónica. Fonte do GOL, que tem à volta de 2500 membros, adiantou que o debate na Grande Dieta já começou no fim de semana passado. Mas o caminho levará tempo. Curiosamente, o Grande Oriente de França admite lojas mistas desde 2012 e o Grande Oriente da Bélgica desde 2020 (onde se discute agora a constituição de lojas exclusivamente femininas).

Na verdade, segundo António Ventura, doutorado em História Contemporânea, professor catedrático emérito da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa, autor de livros sobre a maçonaria e ele próprio maçom, “já houve mulheres no GOL”. “No século XIX houve lojas com mulheres e no século XX houve duas lojas femininas, que estavam em pé de igualdade com as masculinas, tinham representantes na Grande Dieta”, esclarece. Só que, em 1922, “o GOL aderiu à Associação Maçónica Internacional e uma das condições dos estatutos dessa associação era a não pertença de mulheres”, o que culminou com a saída definitiva dos elementos femininos. “O que vigorava naquela altura, e ainda hoje, na maioria da maçonaria internacional é a não presença de mulheres, não por preconceito, mas por uma questão de tradição”, refere António Ventura. Aliás, a Constituição de Anderson de 1723, documento fundador da maçonaria moderna, que surgiu em Inglaterra, não permite a entrada de mulheres. “Está muito ligado à mentalidade daquela época, ao papel que a mulher tinha socialmente. Aqueles que defendem agora a entrada das mulheres fazem-no precisamente pela adaptação aos novos tempos.”

Tirando as amarras da tradição, há que lembrar, diz o docente já reformado, “que as mulheres da maçonaria tiveram um papel importantíssimo, com figuras como Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabette, algumas das mulheres mais importantes do movimento feminista e republicano”. As maçonas foram intervenientes ativas para a Constituição da República Portuguesa, inspiradas pela conquista de direitos para as mulheres, nomeadamente de voto, uma expectativa que acabaria defraudada. O único texto que Lídia Jorge escreveu para teatro, até agora, tem o título “A maçon” e é inspirado precisamente na vida de Adelaide Cabette. A história da maçonaria, é inevitável, confunde-se com a do país, até no papel das mulheres.

Os preconceitos, o mistério, as polémicas

Porém, antes de tudo, há que entender a maçonaria, como funciona, o manto de mistério em que ainda vive. A maçonaria é uma organização na qual uma pessoa entra através de uma cerimónia de iniciação e que tem uma série de rituais. De resto, e para simplificar, embora não tenha nada de religioso, é como acontece nas religiões. Além disso, é universal, tem princípios transversais, de liberdade, igualdade e fraternidade, que depois se materializam de forma diferente em cada organização maçónica (obediência, assim se chama), quase como o cristianismo que se materializa em diferentes igrejas. E é fraterna, assenta na ideia de que todos os membros são irmãos e se devem ajudar.

Cada obediência – estima-se que há, hoje, mais de 20 em Portugal, masculinas, mistas, uma feminina, multiplicaram-se no pós-25 de Abril – é formada por várias lojas, que são locais de reunião, templos, e que seguem uma hierarquia (cada loja tem uma espécie de mini-governo, como acontece numa empresa, numa associação ou num clube). Aí há rituais, vestem-se os famosos aventais, símbolo do trabalho, discutem-se ideias, promovem-se debates, fazem-se promessas e juramentos, iniciam-se novos membros, aprovam-se ajudas financeiras, criam-se projetos que ganham forma no mundo profano. O objetivo último é o aperfeiçoamento individual, um processo íntimo de evolução pessoal, muitas vezes através do convívio com pessoas que pensam de forma diferente, que são de partidos distintos, de várias religiões. É um espaço filosófico até, que nas sessões que cada loja organiza procura responder às questões profundas da humanidade, que defende princípios de tolerância, de uma sociedade mais justa e igualitária. E os maçons devem levar esses princípios para a vida pessoal. Se recuarmos às origens, à Idade Média, a maçonaria surgiu pelas mãos de pedreiros, construtores, como um espaço de socialização baseado na tolerância.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Dito isto, ainda hoje vive debaixo de uma cortina de mistério, até porque há o segredo maçónico, só os membros sabem o que acontece nas sessões e não se pode divulgar a identidade de outros maçons – muitos escolhem não dizer publicamente que o são. Talvez por isso desperte tanta curiosidade. “Isso é por uma questão histórica, para evitar perseguições (como aconteceu com a Inquisição). Ainda há casos em que as pessoas são prejudicadas profissionalmente por isso. Por que razão então não se pode assistir a uma sessão maçónica? Pela mesma razão que não se pode assistir a um Conselho de Ministros ou a uma reunião do conselho de administração de uma empresa. É como entrar num clube só para sócios, não tem a ver com práticas indignas ou conspiratórias”, frisa António Ventura.

Ainda assim, a maçonaria já viveu várias polémicas, por alegado compadrio e influência na política, na justiça também. Há pouco mais de uma década, um ex-juiz acusava a maçonaria de controlar os tribunais portugueses. No livro “O fim dos segredos”, a autora Catarina Guerreiro revelava que a maçonaria recruta muitos dos seus membros nas juventudes partidárias do PS e do PSD, também nas universidades. E haverá uma loja do país que consegue ter sempre entre os seus membros um elemento próximo dos vários primeiros-ministros. A obra, de 2015, ainda levanta o véu para o que acontece nas reuniões, nomeadamente para rituais com caveiras e caixões.

Mais recentemente, veio a público o facto de haver maçons da extrema-direita, nomeadamente no GOL, mesmo que a entrada de um novo membro funcione por apadrinhamento, haja antes um inquérito (para garantir que os candidatos são exemplares do ponto de vista social e moral) e até seja necessário apresentar o registo criminal. O grão-mestre, Fernando Cabecinha, já afirmou que pessoas intolerantes ligadas a movimentos populistas não se sentirão bem na maçonaria, que pugna por princípios igualitários, que é defensora da democracia e do “respeito pelo outro”. Mas a maçonaria é reflexo da sociedade, feita de seres humanos.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Para quem a vê de fora, há a ideia de que é lugar de gente influente, endinheirada. E para isso muito contribuem os mitos que a envolvem. De facto, para entrar é preciso pagar uma espécie de joia (entre os 150 e os 200 euros no GOL) e há quotas mensais (uma média de 20 euros). Além do saco do dinheiro, que circula em cada sessão, dá quem quiser, como acontece na missa, para angariar verbas para projetos beneméritos, por exemplo. “Ter uma joia não é exclusivo da maçonaria e não é um valor exorbitante. Nunca foi um espaço para pessoas influentes. Basta ver que na Primeira República Portuguesa os membros mais importantes eram comerciantes, professores primários, empregados, não eram políticos. Atualmente, há pessoas de todo o lado, agricultores, advogados, polícias, operários, carpinteiros. Tanto entram com 70 anos como com 18. Mas há um desconhecimento muito grande”, sublinha António Ventura. E, no entanto, há milhares de livros, filmes, vídeos no YouTube de cerimónias maçónicas.

As mulheres e o peso da história

Fátima (só Fátima, porque a família não sabe que é maçona) talvez seja exemplo disso. É professora primária no Porto, entrou na Grande Loja Feminina de Portugal há 20 anos, tinha pouco mais de 40. “Uma pessoa de uma loja masculina aqui no Porto contactou-me. Eu conhecia bem o papel da maçonaria, a história, sempre tive muito respeito, não tinha preconceito nenhum”, comenta. Entrou e até hoje não se arrepende, faz até questão de dizer que a sua assiduidade nas sessões “não é boa, é muito boa”. Há duas décadas, quando se iniciou, era católica praticante, hoje é “menos praticante”. “O catolicismo não dá às pessoas espaços de reflexão, isso deu-me a maçonaria, instrumentos para me conhecer melhor, sou uma mulher muito mais livre hoje. Aqui não há etnias, raças, partidos políticos, religiões, orientações sexuais.” É da Loja Invicta e já chegou a convidar amigas que ficaram chocadas por ela ser maçona. Só não o assume publicamente por saber que seria um desgosto para a mãe. “Sei que ela tem um preconceito terrível, há muito desconhecimento. Claro que haverá pessoas que usam a maçonaria para movimentar interesses. Mas que interesses movimentei eu nestes 20 anos? Não somos esse grupo que se encobre, de malfeitores, essa máfia de que se fala. E podemos sair quando quisermos.” A professora portuense nunca quis sair, continua maçona de pedra e cal aos 63 anos.

Os ritos na maçonaria feminina, conta, são em tudo idênticos à masculina, incluindo serem necessárias sete mestras para criar uma loja, os aventais, as cerimónias de iniciação. Mas até aí chegar, até a mulher conquistar o próprio espaço na organização, o caminho foi longo, de vaivéns (ainda o é). A história é disso testemunha. “A mulher sempre foi considerada um ser humano de segunda, destituída intelectualmente”, recorda Odete Isabel. Curiosamente, a participação feminina de forma mais evidente começou com o modelo de lojas de adoção, controversas desde logo, por se pressupor que eram “adotadas”, anexadas a uma loja masculina, dependentes. Só com o tempo conquistariam a independência. A Grande Loja Feminina de Portugal começou a ganhar forma no princípio da década de 1980 (antes disso, porém, já existia a Federação Portuguesa do Direito Humano, uma obediência mista).

“Em 1982, vão quatro mulheres portuguesas a França, a Grande Loja Feminina de França foi reconhecida e passou a ser na Europa a fortaleza da maçonaria feminina”, revela Odete Isabel. Começou aí a preparar-se o terreno para a maçonaria feminina se reimplantar em Portugal. “Essas quatro mulheres foram iniciadas em França, pelo menos uma vez por mês iam a Paris, para trabalharem com as irmãs francesas, o que é notável.” Em 1983, formou-se a primeira loja feminina portuguesa, Unidade e Mátria, em Lisboa. As maçonas começaram a recrutar membros, e “com essa loja apareceram outras, na Figueira da Foz, no Porto, hoje são 26 lojas espalhadas pelo país, cerca de 600 membros”. Assistiu-se, desde então, a uma maior adesão das mulheres à maçonaria, a par da conquista de maior participação na vida política, social, cultural e económica.

No ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, a luta feminina ainda se trava em várias frentes, incluindo na maçonaria. “Estamos em 2024 e olha-se para as empresas, para a Assembleia da República, para todo o lado, e as mulheres continuam a receber menos, sem ter acesso fácil às cadeiras do poder, essas ainda são para os homens.” Odete Isabel guarda para sempre uma frase de Maria de Lourdes Pintasilgo, única mulher que desempenhou o cargo de primeira-ministra no nosso país e que a grã-mestra da Grande Loja Feminina de Portugal conhecera na Juventude Universitária Católica. “A humanidade é como uma ave, que tem duas asas, uma é o homem, a outra a mulher. Enquanto não estiverem as duas igualmente desenvolvidas, nunca poderá voar.” Odete Isabel ainda acredita – e há de lutar a vida toda por isso – que a ave pode voar, dentro e fora da maçonaria.