Valter Hugo Mãe

O espanto de acreditar


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Quase toda a minha vida adulta procurei não acreditar senão na evidência da vida, rejeitando tudo quanto se justifique por transcendência, para depois da morte, pela ideia bizarra de existir uma entidade omnipresente, criadora. Ponderando acerca do assunto, a minha convicção é imediata. Não existe nada. Somos ridículos arrogantes, pendurados num calhau à volta do Sol. Contudo, nessa dimensão sem regra que é a do pressentimento, no ímpeto que se escapa ao pensamento, toda a minha vida me foi inevitável a impressão de uma companhia, de um olhar sobre nós, uma interlocução silente mas intensa que acompanha o fundamental da nossa concretização. Não vou poder chamar-lhe Deus, tenho pudor e mil livros mo impedem. Mas também pode ser que não consiga chamar assim por me apequenar diante de algo que concebo que seja obrigatoriamente magnífico, desmesurado, que me solicita silêncio e liberdade. Qualquer captura. Não nomear liberta.

Claro que me deslumbrei em tantas ocasiões, desviado da humildade para o exercício de um orgulho qualquer, com a mania de ter conquistado algo que me distingue ou escolhe. Contudo, sou essencialmente ao contrário. Importa-me a gratidão e a convicção absoluta de que a vida me entregou o suficiente para não me declarar vítima de existir. Existo num claríssimo privilégio de ter chegado a vários dos meus sonhos, sendo que o maior de todos, afinal, é manter inalterada a natureza interior que me impele para a boa-fé, por mais que me agridam, por mais que viver seja perder muito, até perder tudo, sobretudo, perder todos. O maior dos sonhos é reconhecer-me ainda. Atrapalhado e dificultado, mas intacto no íntimo da minha natureza, a de querer lutar para estar limpo no instante em que me sobre a alma.

Julgo que acredito com espanto. Quer dizer, sou obrigado a acreditar, acima de tanta racionalidade e tempo de mágoas, eu sou obrigado e acredito. Pressinto demasiado. Talvez me faça de muita loucura ou me aconteça a graça da lucidez. Aos tantos anos de vida, sem paciência, celebro cada vez mais a maravilha de pensar que não existe Deus mas sentir que sim. Entre o que penso e sinto, como pela força que têm os poemas e os milagres, tomo decisão nenhuma. Aceito ir à mercê. Colho versos. Apaziguo-me. Há sempre uma felicidade na aceitação sincera, madura, daquilo que nos espera como um destino.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)