Joel Neto

Estes homens que se ignoram


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Tive um colega que se esforçou por proporcionar ao filho adolescente, nas férias e nos furos escolares, a oportunidade de trabalhar em cada um dos ofícios em que não queria que se empregasse. “Vais ver se ele se põe com sabáticas e merdas hippie”, explicou-me. “Assim que se lembrar do que custa a vida a um empregado de café, é de 16 para cima.” E riu-se: “Ainda hei-de pedir-lhe que não estude tanto, para não fazer mal à vista”.

Não sei que balanço faz hoje o meu velho colega dessa demanda: o filho vai no pós-doutoramento, mas também continua a viver com os pais. Talvez não haja, à partida, uma escolha de vida inevitavelmente mais livre do que a outra (nem mais inteligente). Mas o que aqui me importa é aquela repugnância pelo trabalho de café. Porque, agora que se passam três semanas desde que nos tornámos proprietários de uma livraria-cafetaria, o meu respeito pelos que o fazem subiu na vertical.

Estou aqui a escrever e dói-me a mão direita: ainda não há duas horas que voltei do hospital, onde fui levar pontos depois de mais um corte. Desde que abrimos, já me cortei umas dez vezes. Entretanto, daqui a pouco tenho de percorrer os fornecedores, a fazer as encomendas para amanhã: morro de medo de me esquecer de qualquer coisa (e esqueço mesmo, apesar de ter notas em post-its, no caderno, no telemóvel, no Simplenote, no Remarkable, no computador). Ainda não decorei metade das maneiras de se servir um café: o “sem princípio” continua na moda, mas agora também se pede “quase cheio” ou “quase italiana”, e ainda esta manhã fiz um “abatanado curto”, para que não teria pensamento abstracto. E, em geral, se dou com a referência de uma queijada, não encontro o código de um livro; se não nos trai o sistema, falha-nos o wi-fi; e, se estamos a vender bem as tostas, acaba-se o flamengo.

É um stress, uma cafetaria. E pensava eu que trabalhava muito – tinha uma vida santa. Em uma semana, perdi quatro quilos. Dir-me-ão: “Mas isso é porque és o dono…” Ah, sim: fazer as mesmas coisas e ainda precisar de ter sorte para encontrar um patrão que pague acima do ordenado mínimo é muito melhor.

E eu bem gostava de dizer que era por isso que o meu colega queria tanto ver o filho longe de um balcão. Sempre podia percebê-lo: a pobreza nunca serviu para nada, a não ser para a perpetuação da injustiça. Mas o que o inquieta é não encontrar dignidade em tal trabalho. E eu, se um dia der por mim em tal dilema com o meu próprio filho, agora já sei: antes estimulá-lo a porfiar nele até lhe determinar a beleza do que apenas até fugir dele a sete pés.