Valter Hugo Mãe

Calipso Amor


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O que acontece aos GNR é do foro do diamante, uma sedimentação genial que encontra em três homens sua definição de gema, sua perfeição. A carismática figura de Rui Reininho pode ser a mais imediata da formação, contudo, Jorge Romão e Tóli César Machado são absolutamente fundamentais no cômputo desta que será a banda pop mais preciosa do país.

Há umas semanas, alguém partilhou nas redes a canção “Calipso Amor”, primeiro avanço para o novo disco a solo de Tóli, e eu tive a impressão imediata de estar numa noite de baile calmo, depois das chuvas, ainda frio, a ver pelas vidraças os poucos carros passando, como chegam as mulheres de lábios pintados e pedem bebidas engalanadas com frutas e guarda-sóis de papel. Eu não danço, mas adoro a sugestão de certo embalo e a ideia de namoro. Adoro que tudo se prepare para a corte, como se potenciássemos o corpo para o evento de amar, de sermos amados.

É impossível ser-se português sem se haver amado um tanto de canções de Tóli César Machado. A banda sonora da nossa identidade passa categoricamente pelos GNR, somos feitos dessas melodias, dessas palavras, e não seria possível entender o que fizemos do país sem ponderar o que ali está pensado, o que ali se critica e celebra. Curiosamente, a solo Tóli parece sobretudo correr por uma libertação que lhe pode oferecer tudo, como se partisse do seu lugar para chegar ao descompromisso total. Por isso, há música contemporânea, pop, há fado e há tango, e há um punhado de convidados que permitem essa vastidão de texturas e climas. A unidade é conseguida por uma delicadeza melódica verdadeiramente virtuosa, uma espécie de requinte que parece não ter nada a provar a ninguém. Existe com toda a naturalidade, dirige-se à plenitude, sem amarras nem temores.

Chama-se “Noir” e é já um dos discos fundamentais para 2024. Elegância e glamour, abre com a participação da maravilhosa Ianina Khmelik, violinista, responsável pelo projecto Ian. Junta Ela Vaz, Helder Moutinho, Valter Lobo, Mariza Liz, Ricardo Pereira, Marcela Freitas e essa voz açoriana irrepetível, imperdível, que é a de Zeca Medeiros, homem que vejo de pedra, cratera que aprendeu a dizer.

São mais de quarenta anos de música para chegar a este luxo. O que Tóli César Machado nos traz é o luxo de uma vida inteira de génio. O disco que ouço agora, obrigatório, só não é uma surpresa porque já se sabia bem que haveria de valer por mil.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)