As dores de crescimento dos carros elétricos

As vendas dos veículos amigos do ambiente continuam a subir, mas há dores de crescimento incontornáveis. As infraestruturas que ainda deixam a desejar, as baixas autonomias e os preços avultados estão entre as queixas mais frequentes.

A data está definida: a partir de 2035, deixa de ser permitida a venda de carros novos com motor de combustão convencional em toda a União Europeia. Os veículos movidos a gasolina e gasóleo darão definitivamente lugar aos elétricos, indiscutivelmente mais amigos do ambiente. Em Portugal, a UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos tem-se batido até por um encurtamento do prazo para 2030. A ideia seria que até 2035 ainda pudessem ser vendidos também híbridos plug-in (que funcionam com dois motores, um a combustão elétrica e outro interno) e que, a partir dessa data, a possibilidade de compra ficasse então reduzida aos elétricos. A questão é: estamos no bom caminho?

Primeiro, os números. Se em 2013 havia no nosso país 2154 veículos elétricos (entre 100% elétricos e híbridos plug-in), no ano passado o número superava já os 220 mil. Ou seja, em apenas dez anos, o parque de elétricos cresceu mais de 100 vezes. A evolução do número de postos de carregamento também é significativa. Segundo dados da Mobi.E, que atua como Entidade Gestora da Rede de Mobilidade Elétrica, a rede de acesso público inclui atualmente 7895 pontos de carregamento (note-se que neste número não estão incluídos os postos da Tesla e do Continente, nem os privados). E os postos rápidos e ultrarrápidos são já perto de 1700, quando em 2020 rondavam os 250.

Alexandre Videira, administrador da Mobi.E, realça ainda que a rede portuguesa “não só cumpre” as exigências do novo Regulamento Europeu (o AFIR obrigada a que as redes públicas disponibilizem 1,3 kW de potência por cada veículo totalmente elétrico e 0,8 kW por cada veículo plug-In), “como tem uma margem de cerca de 10%”. Ainda assim, há queixas recorrentes, utilizadores que torcem o nariz, uma certa desconfiança que prevalece.

Vamos a casos concretos. Há uns dois anos anos, Rogério Santos, 68 anos, residente em Vila Meã, apostou em reforçar a frota da empresa com um veículo elétrico, no caso um Nissan Lift. Fê-lo, sobretudo, por ser mais económico. Só que a realidade revelou-se mais sinuosa. “Era ótimo para andar dentro da cidade. Mas eu ando muito com o carro, de 15 em 15 dias tenho de ir a Lisboa e em viagens longas é mais complicado. Diziam que o carro tinha 350 quilómetros de autonomia, mas não fazia mais de 200 e mesmo assim tinha de rezar três ave-marias e dois pais-nossos”, observa, meio a rir. Teve até uma viagem à capital particularmente atribulada. “Não havia uma área de serviço onde os postos estivessem a trabalhar. Eles estavam lá, mas envoltos numa espécie de papel celofane. Só consegui carregar já em Pombal.” Depois, era o tempo de espera para que o carro ficasse carregado, nunca menos de 45 minutos, e isto quando corria bem. “Dei por mim muitas vezes a deixar o carro cá e a levar outro [da frota da empresa] para não ter este tipo de problemas.” Daí que, quando há cerca de meio ano, lhe bateram no carro, optou por terminar o “renting” e voltar aos veículos de combustão. Até porque os elétricos ainda são “muito caros”, aponta.

Maria Cruz (37 anos), que durante anos conduziu um Tesla, partilha parte das frustrações de Rogério. Desde logo em relação à autonomia. “Teoricamente tinha mais de 500 quilómetros, mas não são reais. Vai sempre depender da velocidade a que se anda.” Maria, residente em Guimarães, tentava sempre parar onde houvesse postos de carregamento da Tesla, para não perder mais que 40 minutos, mas quantas vezes não havia nenhum nas redondezas e teve de se sujeitar a tempos de espera que chegavam às três horas. Pelo meio, houve uns quantos episódios inusitados. Como o que ocorreu numa passagem de ano em que decidiu ir para Bragança com uns amigos. Vale a pena dizer, para se enquadrar devidamente a experiência, que o episódio teve lugar em 2015. “À ida, até correu tudo bem. Só que no regresso, os postos de carregamento públicos estavam avariados. Então tivemos de ir até Ribeira de Pena [onde existe um um posto de carregamento da Tesla], ainda andámos lá perdidos nas aldeias, já tudo no carro em silêncio, um certo desespero porque só pensávamos como é que íamos lá chegar se ficássemos sem carga entretanto. Acabámos por chegar no limite, com 5%.”

De lá para cá, muito mudou ao nível das infraestruturas. Mas, entende Maria, que só há um ano deixou de andar ao volante de um elétrico, as dificuldades sentidas no interior do país continuam a ser um obstáculo. “Se se quiser ir visitar dadas zonas onde não existem postos de abastecimentos das marcas, vai-se com o coração nas mãos, sem saber se os postos públicos estão a funcionar.” Além da constante gestão a que os elétricos obrigam, a necessidade de “planear tudo ao pormenor” para não ficar apeado. “É verdade que, sobretudo para fazer trabalho-casa, tem grandes vantagens, desde logo o facto de ser muito silencioso. Mas enquanto não der para carregar em qualquer lado e numa mini-pausa de 20 minutos, enquanto se bebe um café e fuma um cigarro, prefiro um carro a combustão.”

A perspetiva do presidente da UVE, Pedro Faria, é mais risonha. “O nosso entendimento é que a rede tem seguido o desenvolvimento necessário. Nos vários estudos que têm sido feitos a nível europeu, Portugal surge sempre bem posicionado em termos de postos de carregamento. Há bastantes e espalhados pelo país”, ressalva. Nem tudo são boas notícias, ainda assim. Nomeadamente ao nível das infraestruturas disponíveis nos eixos principais. “O que se impõe é que, pelo menos na A1 e na A2, tenhamos hubs de carregamento, postos com várias tomadas disponíveis para carregar. Neste momento, por cada estação de serviço, há duas ou três. Isto significa que durante a semana vamos tendo capacidade para chegar e carregar. Mas assim que há um qualquer evento, um concerto de música, um jogo de futebol, um fim de semana prolongado, essa capacidade deixa de existir.” E os automobilistas arriscam ficar horas à espera. Por isso, Pedro não tem dúvidas: “Os hubs nas autoestradas são o próximo passo que temos de dar na mobilidade elétrica. Os utilizadores têm de ter a garantia de que há sempre um posto disponível para carregar.”

(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Outra questão prende-se com a potência dos postos de carregamento. “Relativamente à realidade europeia, há alguma disparidade no número de postos ultrarrápidos, particularmente relevantes no caso dos carros mais modernos”, reconhece. Há, no entanto, grandes investimentos a serem feitos para dotar a rede de carregadores cada vez mais potentes. Um deles, na ordem dos mil milhões de euros, parte da Iberdrola | bp pulse (uma aliança entre as duas marcas que lhe dão nome), formalmente criada em dezembro passado. A meta é atingir os cinco mil pontos de carregamento rápidos e ultrarrápidos na Península Ibérica até 2025 e quase 12 mil até 2030. Ricardo Pacheco, responsável máximo da empresa em Portugal, explica. “Uma das barreiras que percebemos é a velocidade de carregamento da rede existente, uma vez que grande parte da infraestrutura pública não é rápida. Este é um ponto fundamental quando se trata de utilizadores que optam pela mudança para veículos elétricos. Com os nossos carregadores conseguem obter autonomia suficiente para percorrer cerca de 300 quilómetros em cerca de dez minutos, facilitando assim a rotação no carregamento.”

Mas o crescimento da rede nem sempre é tão rápido como os utilizadores (e os comercializadores) desejariam. Gonçalo Castelo Branco, diretor de Mobilidade Inteligente da EDP Comercial, empresa que tem já mais de 2300 pontos de carregamento contratados em 185 municípios de todo o país, admite, por exemplo, que esta expansão contempla “desafios de potência elétrica, obras de infraestrutura e processos de licenciamento que podem por vezes atrasar a rapidez com que todos os agentes gostariam de contribuir para a mobilidade”.

E quanto à cobertura no interior do país? Pedro Faria, da UVE, vê o copo meio cheio. “Não há tantos postos como no litoral, mas não vamos ficar parados. Há três anos, quando saíamos de viagem num elétrico, tínhamos de pensar bem onde podíamos carregar. Hoje não. A rede é bastante capilar, há postos um pouco por todo o lado e de diversas potências.”

Mas há dificuldades que continuam a obstar a uma adesão maciça. Mário Martins Silva, do Automóvel Club de Portugal, lembra isso mesmo. “Ainda há várias limitações.” Por um lado, a já referida falta de infraestruturas, “tanto na via pública como nas residências”. “Quem vive em prédios tem mais dificuldade porque há limitações ao nível do fornecimento de energia e da capacidade das próprias redes elétricas.” Entre outros entraves prementes. Como a “baixa autonomia dos carros” e o preço. “Os benefícios fiscais aplicam-se só a quem compra os primeiros carros do ano. Às vezes esgotam-se em meia dúzia de dias.” Ainda assim, o balanço é positivo. “Estamos no bom caminho. Comparando com Espanha, Portugal está claramente mais avançado. E em relação ao preço, o que tem mais impacto é o custo das baterias. A massificação do fabrico também vai ajudar a baixar o preço total.”

A propósito das “queixas” relativas à autonomia e ao preço dos elétricos, José Mendes da Silva, Head of New Mobility & Connected Services na BMW Group Portugal, a segunda marca que mais elétricos vende em Portugal (a primeira é a Tesla, que a NM tentou, sem sucesso, contactar), contrapõe que “é notória a evolução tecnológica verificada nos últimos anos”, nomeadamente em relação à autonomia e ao preço das baterias. E salienta que, no espaço de uma década, os modelos lançados pela BMW mais do que duplicaram a sua autonomia. De resto, e mesmo ressalvando que diferentes países, “a sul e a leste da Europa, estão mais atrasados do que Portugal”, refere que “a infraestrutura pública não é, para já, suficiente para satisfazer todos os clientes” e recorda que, para garantir o cumprimento das metas até 2050 (ano para que está apontada a neutralidade carbónica), é necessário criar 76 mil novos pontos de carregamento.

Pedro Faria, da UVE, defende, a propósito, que seria importante eliminar burocracias, desde as que tornam o processo de criação de novos postos algo complexo à forma de utilização da rede pública, nomeadamente ao nível do pagamento. E se reconhece que até estamos bem lançados para cumprir as metas da mobilidade elétrica, também admite que será preciso manter “uma especial atenção à rede de carregamento”. “Se não o fizermos, ao ritmo a que estão a decorrer as vendas, rapidamente ficamos numa situação muito complicada.”