A xenofobia está a crescer, mas Portugal continua a fechar os olhos

Ataques racistas e xenófobos sucedem-se, grupos nacionalistas de extrema-direita ganham força, associações e académicos admitem que o fenómeno está em crescendo. As causas, as raízes e as nuances de um flagelo que o país tarda a reconhecer.

O racismo atacou em força na noite do Porto, irrompeu colérico por uma casa antiga na rua do Bonfim, linchou mais de uma dezena de imigrantes que dormiam tranquilamente até o terror lhes entrar de súbito pela casa adentro. Eram quase todos argelinos, também havia um venezuelano, nenhum escapou à fúria de um grupo de encapuzados que, munidos de bastões, facas e uma arma de fogo, espancaram todos os que lhes apareceram pela frente e deixaram um rasto de destruição a perder de vista. Portas esventradas, camas ensanguentadas, uma casa reduzida a cacos. “Ao mesmo tempo que nos batiam, diziam que não estávamos a fazer nada em Portugal, que tínhamos de regressar ao nosso país”, contou então ao JN Lakehal Zakaria, uma das vítimas. Tudo aconteceu na madrugada de 3 de maio, nessa mesma noite houve na Invicta mais dois ataques contra cidadãos magrebinos, não há memória na cidade de agressões racistas tão brutais. O caso agitou o país, motivou condenações múltiplas, voltou a trazer a discussão sobre racismo, xenofobia e extremismos para a ordem do dia. Pelo meio, da imprensa sensacionalista ao Chega, não faltou quem tentasse relacionar o sucedido com uma onda de assaltos na zona, alegadamente cometidos por imigrantes. Mesmo que, como também noticiou o JN, nenhum dos visados naquela noite dos horrores tivesse antecedentes criminais. As autoridades estão agora a investigar uma possível ligação dos presumíveis autores do ataque ao grupo de extrema-direita 1143, liderado por Mário Machado.

Mais recentemente, surgiram relatos de um outro caso, que terá ocorrido no início do ano, numa escola do concelho da Amadora: um menino de nove anos, supostamente de origem nepalesa, terá sido agredido por cinco colegas, todos menores, que, enquanto o violentavam, proferiam insultos racistas e xenófobos. O episódio foi contado pela diretora executiva do Centro Padre Alves Correia (CEPAC), uma instituição da Igreja, à Rádio Renascença. No entanto, têm-se adensado as dúvidas sobre o caso. O Ministério da Educação garantiu que nenhum estabelecimento escolar lisboeta tinha registo de uma situação semelhante à descrita pela notícia e que na escola onde o CEPAC garantiu ter ocorrido a agressão não havia nenhuma criança nepalesa daquela idade. Mais tarde, acrescentou que não houve qualquer pedido de transferência da suposta vítima nem foram aplicadas sanções a alegados agressores (contrariamente ao que tinha sido relatado pela responsável do centro). Já a Procuradoria-Geral da República confirmou ter recebido uma denúncia, mas ressalvou que dela não constava informação relativa à nacionalidade da vítima. Indicava-se apenas a nacionalidade da mãe e não seria nepalesa.

Não é difícil, contudo, recordar outros episódios de contornos racistas ocorridos recentemente. Há apenas dois meses, Ademir Araújo Moreno, cidadão cabo-verdiano de 49 anos, não resistiu a uma violenta agressão no exterior de uma discoteca na ilha do Faial, nos Açores. O ataque foi descrito por um grupo de cidadãos locais como “puro ódio racial”. Em novembro passado, Shahil Gurpreet Singh, indiano de 25 anos, foi abatido a tiro na casa em que vivia. A vítima encontrava-se no quarto quando foi visada por vários tiros de caçadeira, disparados a partir do exterior. Um deles atingiu-o em cheio no peito. Depois, um dos agressores ainda tentou entrar na casa onde viviam mais cinco indianos. Disparou por duas vezes e fugiu. “Os dois suspeitos, de nacionalidade portuguesa, tentaram matar todos os ocupantes da casa na localidade das Praias do Sado, por motivação puramente racista”, apurou mais tarde o JN. Em janeiro de 2023, mais ataques, desta feita em Olhão, no Algarve. O caso, que está em julgamento, ganhou forma quando correu no WhatsApp um vídeo que mostrava um rapaz asiático no chão, a ser agredido e a implorar pela vida. Soube-se depois que a vítima era Nirmal Beniya, nepalês de 26 anos, que foi surpreendido por um grupo de jovens atacantes quando voltava a casa depois do trabalho, que havia outras vítimas como ele, imigrantes indianos e nepaleses sobretudo, que as agressões eram perpetradas por mais de uma dezena de jovens e visavam “vítimas especialmente vulneráveis”.

E ainda há o escândalo de Odemira (Alentejo), em 2019, quando militares da GNR agrediram e sequestraram vários imigrantes indostânicos e ainda filmaram para mais tarde recordar. Ou o caso das agressões policiais à luso-angolana Cláudia Simões, em 2020, na sequência de uma altercação num autocarro da Vimeca. Ou o homicídio do luso-guineense Bruno Candé, no mesmo ano, com um tiro à queima-roupa disparado em plena luz do dia. O tribunal validou posteriormente a motivação racista do assassino. Casos particularmente violentos, ocorridos apenas nos últimos anos, e que nem sequer contemplam tantas outras formas de discriminação vividas diariamente pelos imigrantes, na rua, no local de trabalho, nos serviços públicos, nas escolas, até nas universidades. Há questões prementes a colocar. Desde logo esta: o racismo e a xenofobia são fenómenos cada vez mais prevalentes na sociedade portuguesa? Uma resposta objetiva esbarra numa dificuldade de base: a falta de uma recolha sistemática de dados étnico-raciais no nosso país. Há, no entanto, números que ajudam à reflexão. Por exemplo, os inquéritos por discriminação e incitamento ao ódio e à violência instaurados pelo Ministério Público têm aumentado sucessivamente desde 2019 (de 73, nesse ano, para 262, em 2023), noticiou o JN. A tendência está também plasmada nos dados recolhidos pela GNR e pela PSP, ainda que estes sejam relativos a um período mais limitado: de 2022 para 2023, a criminalidade deste cariz aumentou 38%. Já a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), atualmente parada, recebeu, em 2022, 491 queixas, mais 83 do que em 2021. E o SOS Racismo, que só recentemente começou a fazer uma recolha sistemática de dados, tem recebido cada vez mais denúncias (no último ano foram 106).

“Ainda assim, sabemos que uma grande parte das vítimas não denuncia”, sublinha Joana Cabral, dirigente do movimento. Os resultados do “Inquérito às Condições de Vida, Origens e Trajetórias da População Residente em Portugal”, realizado pelo INE no ano passado, confirmam-no. O estudo concluiu que mais de 1,2 milhões de cidadãos já sofreram algum tipo de discriminação em Portugal – com as pessoas ciganas e negras a serem as mais visadas -, mas apenas 8,8% destas vítimas reportaram a situação às autoridades. Quanto às restantes, mais de metade recusou fazer queixa por acreditar que “nada iria mudar”. Apesar das limitações estatísticas, Joana Cabral não tem dúvidas quanto à escalada do racismo e da xenofobia: “Os casos têm aumentado à medida que a conjuntura política e económica se vai transformando”. Com as pessoas negras, magrebinas e asiáticas a serem particularmente visadas. “Todas as que pertençam a um grupo culturalmente e cromaticamente contrastante com o europeu.”

A vergonha que cai

A ideia de um crescendo é partilhada por representantes de outras associações de apoio a imigrantes e também por académicos que há muito se debruçam sobre estes fenómenos. Timóteo Macedo, presidente da associação Solidariedade Imigrante, perceciona uma evolução clara: “O racismo em Portugal sempre foi algo mais sofisticado. Nos autocarros e nas ruas ia havendo quem dissesse coisa como ‘vai para a tua terra’, mas era uma certa verborreia de um número pequeno de pessoas. Agora há um racismo cada vez mais estruturado, que surge à boleia do crescimento das ideologias de extrema-direita”. João Henriques, vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico, espécie de think tank dedicado a esta comunidade, também não tem dúvidas. “Nos contactos diários que temos com a comunidade e as várias associações, vão-nos dando conta de que há episódios de violência verbal e até física que passaram de um contexto esporádico para um registo mais frequente.” Há dois outros fatores que pesam nesta perceção de que a hostilidade está a aumentar. “Por um lado, o que vamos vendo em países como Espanha, França, Bélgica, Países Baixos, com ataques mais diretos e bem mais sublinhados. Depois, em relação à realidade portuguesa, os resultados eleitorais de partidos com discursos islamofóbicos.” O investigador considera mesmo que os cidadãos provenientes de países de maioria muçulmana “têm sido os mais visados”.

O presidente da Associação de Imigrantes Marroquinos confessou recentemente que os seus concidadãos estavam preocupados face aos ataques recentes. Já Alam Kazol, líder da Associação Comunidade de Bangladesh do Porto, dá graças por os seus compatriotas não terem sido, até ver, vítimas de ataques diretos. Mas não consegue evitar a sensação de que “o ódio está a crescer”. “Na rua e nos cafés, ouvimos as pessoas dizerem que se sentem inseguras, que os imigrantes vêm para cá fazer asneiras e criar o caos.” Márcia Cabral, presidente da Associação Casa do Brasil, fundada em 2019, é a única que de alguma forma destoa. “Quando cá chegámos, a xenofobia foi muito maior. Mas claro que continua a acontecer. O racismo é algo que preocupa toda a comunidade e nós não ficamos de fora.”

Da comunidade para a academia, Miguel Vale de Almeida, antropólogo que é professor catedrático no ISCTE-IUL e tem investigado estes temas (também já foi deputado pelo PS), reconhece que há hoje “mais descaramento” e que as ações violentas estão “mais empoderadas por causa das circunstâncias políticas”, mas lembra que, se olharmos para trás, seja através de ataques perpetrados por grupos de extrema-direita como o que vitimou Alcindo Monteiro no Bairro Alto, em 1995, ou de violência mais verbal, “sempre aconteceu muita coisa”. Rui Costa Lopes, psicólogo social e investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, releva uma disparidade curiosa. “Em 2018, um estudo da European Union Agency for Fundamental Rights [FRA] apontava Portugal como o país da União Europeia com menores taxas de violência e vitimização motivadas pelo racismo. Em aparente contraste, se pesquisarmos nas notícias nos últimos cinco anos, conseguimos com relativa facilidade elencar casos de ataques com motivação racista, desde os mais graves [referidos na primeira parte deste artigo] a outros, que não envolveram a morte de pessoas, mas igualmente reveladores.” Como as pichagens xenófobas e racistas em universidades e os ataques verbais a imigrantes brasileiros.

Torna-se, portanto, obrigatório discutir as causas e as explicações desta hostilidade crescente. E que passam necessariamente por um contexto internacional em que as ideias racistas e xenófobas têm florescido. “Eu diria que esta vaga começa com a eleição de Trump, nos EUA [2017], e a partir daí há uma cascata de acontecimentos que nos trouxeram até aqui”, aponta Joana Cabral, do SOS Racismo. Com a economia e as condições de vida difíceis a darem um importante empurrão. “O crescimento destes movimentos acontece sempre em alturas como estas. Em que o emprego desaparece, em que há desindustrialização, em que há a subida da inflação. No caso não temos uma taxa de desemprego particularmente alta, mas temos cada vez mais subemprego e emprego precário. As pessoas trabalham mais e sentem que mesmo assim não têm dinheiro para responder às suas necessidades”, salienta a ativista. O que de alguma forma as torna mais permeáveis a esta ideia de que o outro é uma ameaça. E assim chegámos a este “momento particularmente crítico, em que há uma legitimação das narrativas ultranacionalistas e a propagação de uma ideia securitária de que travar a imigração é garantir que a criminalidade fica fora”.

Na política, na academia, na esfera mediática, não falta quem relacione a escalada racista e xenófoba com os recentes resultados eleitorais. Rui Costa Lopes, por exemplo, reconhece a existência de aspetos conjunturais que ajudam a explicar os ataques recentes. “Um deles poderá ser a normalização da direita radical e, associada a esta, uma normalização e desagravamento mais generalizado de atitudes e comportamentos racistas e discriminatórios, que decorre do discurso e de ações de líderes populistas, em particular de direita radical”, defende. O psicólogo social admite mesmo que esta alteração conjuntural esteja a gerar uma “mudança na sociedade portuguesa”. “Quando há atores políticos com relevância mediática a exibirem discursos e atitudes xenófobas e racistas sem serem socialmente condenados e obtendo algum sucesso eleitoral, isso leva a um questionamento sobre o que era dantes uma claríssima condenação do preconceito e da discriminação. Já não é tão claro que não se pode dizer ou fazer certas coisas.” Vicente Valentim, cientista político e investigador na Universidade de Oxford (Inglaterra), também tem insistido neste ponto. A investigação que fez, à escala europeia, permitiu-lhe concluir que, em muitos países, as crenças racistas e xenófobas já estavam presentes numa parte significativa dos cidadãos. Só não o expressavam como agora. “Eu estudei particularmente o caso alemão, mas acho que os resultados também se aplicam a Portugal, porque grande parte dos padrões que levaram a direita radical a ter sucesso são semelhantes.” E esse sucesso traz outro à-vontade para exprimir abertamente as tais ideias racistas e xenófobas latentes. “O fim da vergonha”, como chamou ao livro que acabou de lançar. A propósito dos ataques recentes, no Porto, o investigador ressalva que “é difícil dizer porque é que um caso em concreto aconteceu”, mas recorda que há “padrões estudados noutros países que nos dão possíveis diretrizes para compreender.” “Nos EUA, em Inglaterra, em Itália, há estudos consistentes que mostram que quando a direita radical avança [em termos eleitorais], aumentam os protestos com ideias xenófobas e os crimes de ódio, sobretudo no período a seguir às eleições.”

Grupos nacionalistas crescem online

A chamada de atenção remete-nos para um outro ponto fulcral da questão: o facto de, concomitantemente ao crescimento da direita radical no Parlamento, se assistir ao recrudescimento dos grupos nacionalistas de extrema-direita, com particular fôlego no meio cibernético. Aliás, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) tem vindo a dar conta da ameaça crescente da extrema-direita, particularmente vincada em dinâmicas online. “1143”, “A Reconquista”, “A ordem identitária” ou “Habeas corpus” são exemplos de grupos que têm estado particularmente ativos nas plataformas online, em particular no Telegram (mas não só). Em comum, têm o facto de erguer bandeiras caras à extrema-direita, sejam elas o nacionalismo exacerbado, a adoração a Salazar, o racismo, o antissemitismo, os ataques à comunidade LGBTQI+. Em alguns, há ainda um forte pendor misógino. Ou negacionista. Em todos, sem exceção, a hostilidade face aos imigrantes é clara. Bem como o apreço pelas teorias da conspiração, da grande “teoria da substituição” (assente na ideia de que há uma conspiração das elites para substituir a cultura da população branca nos países ocidentais por estrangeiros vindos de outros continentes) à partilha de estudos distorcidos ou totalmente fabricados. De todos os grupos, o “1143”, o tal liderado por Mário Machado, é possivelmente o mais ativo e organizado. Entre os mais de 1400 utilizadores que integram o chat RCE (Racismo Contra Europeus), há elementos das forças de segurança, militares, ex-militares, seguranças privados, apurou a “Notícias Magazine”. Muitos membros, neste e noutros grupos, assumem sem rodeios o voto no Chega. Como um meio para chegar a um fim. Miguel Vale de Almeida vê aqui dois fatores de uma mesma equação. “De alguma forma, a função do Chega e do [André] Ventura é servirem de altifalantes, ajudarem a legitimar. O plano do Mário Machado parece ser deixá-lo fazer o trabalho de porta-voz para depois poder fazer ações diretas mais violentas. Estão a jogar em várias frentes.”

Dinâmicas grupais à parte, parece, por fim, claro que o racismo e a xenofobia há muito estão impregnados na sociedade portuguesa. Já em 2020 o European Social Survey dava conta de que mais de 60% dos portugueses revelavam alguma forma de racismo. Qual monstro adormecido. Cristina Roldão, socióloga que é docente no Politécnico de Setúbal e integra o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE, é taxativa. “Parece-me que seria incrível que um país como o nosso – com um passado colonial tão extenso, que só agora está a festejar os primeiros 50 anos em 500 em que não teve um império colonial, império esse que só pôde ser estabelecido e legitimado através de ideias e relações racistas – não tivesse profundamente enraizado o racismo nas suas múltiplas expressões. Ainda assim, parece que vivemos sempre neste limiar, de surpresa e crispação constantes, que nunca passamos desta espécie de diagnóstico sobre se há ou não há racismo em Portugal.” Joana Cabral, do SOS Racismo, também enfatiza este ponto. “Ainda estamos muito atrasados na capacidade que temos de discutir o fenómeno com seriedade, preferimos insistir na ideia de que Portugal é um país com uma matriz muito multicultural. São narrativas lusotropicais que foram fabricadas pelo Estado Novo e que têm sido muito difíceis de desconstruir, porque estão muito impregnadas nas representações das pessoas comuns, que de uma forma geral são pouco informadas e encontram conforto nesta narrativa, porque ela reforça a identidade nacional e a autoestima individual.”

A ativista, que é também professora universitária e investigadora na Universidade Lusófona, no Porto, aponta ainda o dedo à “política paradoxal” que Portugal tem tido em relação à imigração. E que acaba por fragilizar ainda mais pessoas já particularmente vulneráveis. “Portugal tem beneficiado muito da imigração, tanto da qualificada como da menos qualificada, mas há uma disparidade grande. Se os primeiros nem sequer são representados como estrangeiros intrusos, há muitos outros que estão abaixo do limiar da pobreza nos seus países, que fogem da guerra, de perseguições políticas, e que em Portugal encontram portas abertas, mas que de alguma forma se fecham com eles no meio.” A ativista critica as condições de vida degradantes em que muitos destes imigrantes acabam, sem uma habitação condigna, sem um contrato de trabalho, sem qualquer tipo de proteção. Visa ainda a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), que veio substituir, em algumas competências, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mas que tem estado “inoperante até agora”. “Há muitos milhares de pessoas que estão há um e dois anos à espera de serem legalizadas [estima-se que haja atualmente mais de meio milhão de pessoas à espera da atribuição da nacionalidade portuguesa], e agora a AIMA deu-lhes dez dias para pagar 400 euros [relativos à taxa de análise do título de residência], de forma a que o processo possa avançar. Quando é óbvio que muitos deles não têm esse dinheiro.” Miguel Vale de Almeida é igualmente crítico. “O Estado português tem tido falhas gigantescas nesta área. As pessoas são chamadas através de uma propaganda que assenta na ideia de que as coisas são mais fáceis e justas em Portugal, mas depois tornam-se difíceis por causa das falhas nos serviços.”

E se o reconhecimento das falhas tem sido quase consensual, o que pode ser feito a nível estrutural, na perspetiva de combater o racismo e a xenofobia impregnados na sociedade? Entre as várias pessoas ouvidas pela “Notícias Magazine”, pede-se um Estado mais atuante, com entidades que efetivamente funcionem – vale a pena lembrar que a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) está parada há seis meses -, um posicionamento mais claro e inequívoco da classe política nestas matérias, um reforço da criminalização destes fenómenos. E, não menos importante, a redução das desigualdades sociais. Cristina Roldão dá o Brasil como exemplo. Um país em que, seja através das quotas, do reconhecimento da violência colonial ou de várias outras ações, se têm adotado políticas que estão a gerar “uma transformação profunda da sociedade brasileira”. Miguel Vale de Almeida aponta um caminho possível. “Há uma dimensão mais profunda que passa pelo sistema educativo e que tem a ver com a forma como contamos a história deste país. Tem de ser uma história que não seja exclusivamente branca e heroica, que consiga perceber as conexões entre o tráfico de pessoas escravizadas, o colonialismo com apartheid e as estruturas racistas que continuam na nossa sociedade. Só se pode contrariar isso lentamente, através de um processo educativo mais plural. O Estado tem ainda o dever de garantir que as crianças pobres e negras não ficam para trás, que há igualdade de oportunidades.” O investigador aponta também a importância de “uma educação antirracista que tem de ser feita nas instituições do Estado”. Na Justiça, na política, na administração pública. “São pessoas que lidam com o público e que deviam ser o garante da igualdade. As ações contra a discriminação são fundamentais.”